Usar aparelho ortodôntico é comum na infância e adolescência. O que não pode ocorrer é o abuso sexual das pacientes pelo profissional que faz os procedimentos. “O silêncio não é mais uma opção. Para combater a pedofilia, é necessário ampliarmos o conhecimento sobre suas diversas manifestações”, diz a escritora Joana Aguinaga em relato à revista ELA.
Em depoimento publicado em 26 de março, ela conta detalhes da experiência vivida dos 11 aos 14 anos, quando foi atendida pelo ortodontista Estélio Zen, conhecido na alta sociedade carioca, em um consultório em Ipanema. Desde a revelação da entrevista, a escritora passou a receber muitas mensagens pelo Instagram.
Apesar de não ter dito o nome de Zen, 20 mulheres de sua faixa etária escreveram para dizer que tinham reconhecido o modus operandi do abusador. “Nunca disse o nome dele. Elas me falavam quem era e eu apenas confirmava”, ressalta Joana em entrevista a O Globo. As vítimas, que hoje moram em diversas cidades do Brasil e do mundo, se conectaram, compartilharam lembranças e decidiram informar as autoridades.
Para isso, sete delas contrataram Gabriela Manssur, ex-promotora, presidente do Instituto Justiça de Saia e defensora dos direitos das mulheres. Em 8 de maio, Gabriela apresentou a notícia-crime dos atos que teriam sido cometidos por Zen ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ).
As denunciantes afirmam ter sido vítimas de abuso sexual em situação de vulnerabilidade — já que todas eram crianças e adolescentes quando os fatos ocorreram. “O Ministério Público, agora, distribui o processo para um promotor, que pode requisitar a instalação de um inquérito policial. O que é um inquérito policial? É a colheita de provas”, explica Gabriela.
Como já se passaram muitos anos, a advogada vai iniciar uma ação declaratória de validade para que as vítimas confirmem as afirmações em juízo. “Também solicitaremos informações ao Conselho Regional Odontologia do Rio de Janeiro (CRO-RJ). É preciso verificar se existem outras denúncias contra o senhor Estélio Zen. Na sequência, pode haver ações na esfera cível e, de acordo com o número de vítimas, de danos sociais”, detalha.
Joana acredita que a notícia-crime pode incentivar vítimas que ainda sentem medo de falar a se unirem ao movimento. “É muito provável que queiram aderir à nossa denúncia”, avalia. “Abrimos no Ministério Público um canal, chamado Dente de Leite, direcionado só para as mulheres ficarem seguras para isso”, informa Gabriela.
Defesa da imprescritibilidade
Segundo Gabriela e Joana, a notícia-crime tem efeitos pedagógico e preventivo, bem como se soma a outros esforços voltados para a imprescritibilidade da pedofilia. Gabriela lembra que pedofilia não é crime no Brasil. “Crimes são os atos de cunho sexual cometidos contra crianças e adolescentes”, aponta.
Ela lembra que as vítimas demoram a entender que o que sofreram não é ‘carinho’ nem ‘brincadeira’ — por isso é importante defender a imprescritibilidade. “Ninguém tem o direito de mexer no corpo de uma criança. Trazer à tona esses fatos é utilidade pública”, reforça. Atualmente, o crime de estupro de vulnerável prescreve em duas décadas, a partir de 18 anos.
Outras vítimas
Luciana Walther, de 50 anos, foi paciente de Zen dos 7 aos 18 anos. “Aos 9, coloquei aparelho fixo e precisava ir frequentemente ao consultório para acompanhamento. Ele me dava um abraço por trás, forçado, e ia andando comigo assim por todo o corredor até a porta de saída. Também colocava os instrumentos de trabalho em cima dos meus seios”, conta.
Outra que reconheceu o suposto abusador a partir do depoimento de Joana foi Karina Kuschnir, de 55 anos. “Tinha 14 anos. Ele usava uma calça muito justa e branca, e encostava o pênis no meu ombro”, recorda. Aline de Freitas, de 49 anos, era filha do contador do ortodontista. Depois que seu pai morreu, Zen se tornou mais inconveniente. “Tentava enfiar a língua na minha boca e colocou o pênis para fora”, relata.
Rafaela Borges, de 43 anos, chegou a denunciar o dentista ao CRO-RJ, mas nada foi feito. A reportagem tentou contato com Zen e não obteve retorno.