O sagrado e os mistérios da existência inspiram a música brasileira desde os primórdios. Não é por acaso que a figura de Deus aparece sob os mais diversos aspectos, seja através do humor de um samba de Sinhô feito na década de 1920 até o misticismo elaborado de Gilberto Gil em 1980, chegando à comovente declaração de carência e solidão feita por Vander Lee nos anos 2000, um clássico lançado na voz límpida e atemporal de Gal Costa. Deus está presente na música brasileira. Outro exemplo emblemático é Milton Nascimento, cuja forte influência barroca é indissociável de seu canto, tanto que Elis Regina o comparou à “voz de Deus”.
“Deus nos Livre dos Castigos das Mulheres” (samba, 1928) – Sinhô
Em 1981, o grupo Rumo conseguiu a proeza de lançar dois discos de uma tacada só, logo em sua estreia no mercado fonográfico. Além de um trabalho de inéditas, a trupe apresentou a sua leitura particular de canções pouco conhecidas de cânones da música brasileira, como Noel Rosa, Lamartine Babo e Sinhô, entre elas, pérolas como “Você Só… Mente”, “Não Quero Saber Mais Dela” e “Pierrô Apaixonado”, todas embebidas em um humor que se equilibrava entre a ironia e a ingenuidade. Ali também constava “Deus nos Livre dos Castigos das Mulheres”, que reproduzia o teor machista de quando foi criada por Sinhô e lançada por Mário Reis, principal referência de canto para o Rumo.
“Fica Mal com Deus” (toada, 1963) – Geraldo Vandré
Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, mais conhecido como Geraldo Vandré, nasceu em João Pessoa, na Paraíba, no dia 12 de setembro de 1935. Cantor, compositor, advogado e poeta, sua trajetória é das mais controversas na música brasileira. Após surgir como ícone da música de protesto contra a ditadura e um dos nomes de maior destaque dos festivais da canção, Vandré, perseguido pela ditadura, se exilou em países como Chile, Peru e Argélia. Ao retornar ao Brasil, com o fim do regime, renegou sua obra anterior e passou a ficar recluso, evitando os holofotes. Vandré teria sido torturado pela ditadura. Em 1963, ele apresentou, pela primeira vez, a toada “Fica Mal com Deus”, um dos destaques da sua curta e meteórica carreira de sucessos.
“Deus Vos Salve Esta Casa Santa” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
Em um de seus últimos ensaios o artista plástico Hélio Oiticica (1937 – 1980) chegou a uma conclusão reveladora: “Descobri q o q faço é MÚSICA, e que MÚSICA não é ‘uma das artes’, mas a síntese da consequência da descoberta do corpo”, escreveu o inventor do parangolé, que foi também responsável pela criação do monumento artístico que nomeou a Tropicália. Além de participar do disco “Tropicália Ou Panis et Circensis”, Nara Leão lançou, no mesmo ano, outro álbum dedicado ao estilo, em que cantava músicas de Caetano Veloso e Torquato Neto, como “Lindonéia”, “Mamãe Coragem” e a dramática “Deus Vos Salve Esta Terra Santa”, ultrapassando o título de musa da bossa nova.
“Deus Lhe Pague” (MPB, 1971) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda – o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil. Em 1971, Chico gravou uma das músicas mais emblemáticas de seu repertório: “Deus Lhe Pague”, uma crítica à exploração do homem pelo capital.
“Menino Deus” (samba, 1974) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
O ritual se repete toda manhã. Paulo César Pinheiro toma café, lê os jornais e, sentado diante da mesa, coloca sobre ela folhas em branco, à espera da inspiração que inevitavelmente sempre vem, pelo menos há mais de cinco décadas, quando ele compôs o primeiro verso, com 13 anos. “Eu me lembro de não saber o que estava acontecendo comigo, fiquei agoniado, nervoso, então eu vi um papel e um lápis, e depois que escrevi foi que me acalmei e consegui dormir”, conta o poeta, letrista, melodista, dramaturgo e cantor, entre outras habilidades que um dos mais prolíficos artistas brasileiros vez ou outra explora. Entre as parcerias com Mauro Duarte está o comovente samba “Menino Deus”.
“Eu, a Viola e Deus” (moda de viola, 1979) – Rolando Boldrin
Rolando Boldrin nasceu em São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, no dia 22 de outubro de 1936. Ator, cantor, compositor e apresentador, ele aprendeu a tocar viola ainda na infância, e o instrumento logo se tornou uma paixão em sua vida. Tanto que ele compôs o hino à viola “Vide Vida Marvada”, que se tornou prefixo musical do “Sr. Brasil”, programa que apresentou desde 1981, com passagens pela Rede Globo, SBT, Bandeirantes e TV Cultura. Com mais de 20 discos lançados e uma vasta carreira na teledramaturgia brasileira, Rolando Boldrin é autor de músicas como “Eu, a Viola e Deus”, uma moda de viola emocionante e singela, lançada pelo compositor em 1979.
“Foi Deus Que Fez Você” (canção, 1980) – Luiz Ramalho
Uma explosão tomou conta da vida de Amelinha em 1980. Meses antes, em agosto de 1979, ela havia dado à luz a seu primeiro filho, João. Em Fortaleza, a cantora recebeu a notícia de que Luiz Ramalho tinha uma música para ela. Como mãe e artista, ela admite que a jornada “era bem complexa”. “Naquele tempo, as pessoas eram mais confiáveis. Minha mãe e minha irmã, que é médica e realizou o meu parto, me ajudaram muito. Vim para o Rio com a babá”, lembra.
Quando se deu conta, Amelinha cantava “Foi Deus Que Fez Você” para uma multidão no Maracanãzinho. Classificada para a final, a canção tirou o segundo lugar no festival MPB-80 da Rede Globo. “Desde os ensaios, no Riocentro, notei que a música causava um impacto sobre a plateia. Os festivais eram um bom termômetro. O que tirou um pouco do sabor é que passaram a mostrar as canções antes, perdeu o charme da surpresa”, opina.
“Se Eu Quiser Falar com Deus” (MPB, 1981) – Gilberto Gil
Em 1976, Maria Bethânia sugeriu que ela, Gal, Caetano e Gil fizessem um show juntos para comemorar os dez anos de carreira. Assim se criou os Doces Bárbaros, projeto que reuniu o quarteto baiano e culminou em disco. O dueto de Gal e Bethânia em “Esotérico”, música de Gilberto Gil, é um dos pontos altos do espetáculo que foi gravado ao vivo e lançado em LP duplo.
A música é um exemplo bem-acabado da habilidade de Gil de combinar sensibilidade astrológica com uma poesia que não perde o mistério de vista. “Se eu sou algo incompreensível/ Meu Deus é mais”, afirma um verso antológico desta canção. Cinco anos depois, a pedido de Roberto Carlos, o mesmo Gilberto Gil compôs a comovente “Se Eu Quiser Falar com Deus”, que não foi aproveitada pelo Rei. A canção recebeu gravações antológicas de Gil e de Elis Regina.
“Que o Deus Venha” (blues, 1986) – Cazuza, Frejat e Clarice Lispector
Leitor voraz da obra de Clarice Lispector, o roqueiro Cazuza aproveitou versos escritos pela escritora de origem ucraniana para compor, em 1986, ao lado de Roberto Frejat, o pungente blues “Que o Deus Venha”. A canção foi aproveitada pelo Barão Vermelho e lançada no álbum “Declare Guerra”, sem os vocais de Cazuza, após uma saída tumultuosa para a carreira solo.
Quatro anos depois, em 1990, a música foi regravada no primeiro álbum de Cássia Eller, admiradora tanto de Cazuza quanto de Clarice Lispector. Os versos lancinantes ganharam uma nova camada no canto rouco da intérprete. “Sou inquieto, áspero e desesperançado/ Embora amor dentro de mim eu tenha/ Só que eu não sei usar amor/ Às vezes arranha feito farpa”.
“Cobaias de Deus” (blues, 1989) – Angela Ro Ro e Cazuza
Cazuza era fã de Angela Ro Ro desde que se entendia por gente, e via nela uma referência comportamental e musical de rebeldia e transgressão. Para a musa, ele compôs, com Frejat, “Malandragem”, mas Ro Ro não negou a fama de impulsiva e renegou a canção, mais tarde gravada com enorme sucesso por Cássia Eller. Sem se dar por satisfeito, Cazuza propôs a Ro Ro uma parceria. Juntos, eles compuseram o lancinante blues “Cobaias de Deus”, que não fazia concessões às esperanças humanas. Inspirada no martírio que Cazuza enfrentava em decorrência da AIDS, ganhou interpretação pungente de Ro Ro.
“O Dedo de Deus” (vanguarda, 1990) – Arrigo Barnabé e Mário Manga
Principal artífice da vanguarda paulistana, ao lado de Itamar Assumpção e Luiz Tatit, com uma linha conceitual bem-definida, Arrigo Barnabé, oriundo da música erudita, resolveu levar para o campo da canção popular propostas ousadas e irreverentes, como o atonalismo e a inserção de histórias de gibis. Essa mistura resultou no histórico álbum “Clara Crocodilo”, um acontecimento que chamou atenção até de Elis Regina. Em 1990, ao lado de Mário Manga, oriundo do grupo Premeditando o Breque, pertencente à mesma geração, eles compuseram “O Dedo de Deus”, uma provocativa canção que foi lançada pela cantora Cássia Eller, em 1990, com o seu disco de estreia.
“Onde Deus Possa Me Ouvir” (balada, 2002) – Vander Lee
A voz cristalina, quase transparente de Gal Costa, se afinou perfeitamente com a lírica de “Onde Deus Possa Me Ouvir”. A baiana foi a primeira a gravar essa balada espirituosa – até mais do que espiritual –, de Vander Lee, revelando ao mundo a beleza de uma de suas mais delicadas canções, capaz de enternecer o coração mais ateu. No ano seguinte, Vander Lee concedeu a sua gravação para o clássico, revisitado por Leila Pinheiro, Simone, Elba Ramalho e o Padre Fábio de Melo, e outros. O irmão Marcos Catarina também costuma cantá-la.
“Deus Me Proteja” (MPB, 2008) – Chico César
A cantoria da advogada paraibana Juliette no Big Brother Brasil 21 levou o conterrâneo Chico César ao topo das paradas de sucesso. Tudo porque a participante da atração começou a cantar com frequência “Deus Me Proteja”, uma delicada cantiga de Chico César, lançada originalmente em 2008, no álbum “Francisco, Forró Y Frevo”, em gravação que contou com a participação mais do que especial do sanfoneiro Dominguinhos (1942-2013). Ao fim da faixa, o próprio Dominguinhos elogia com entusiasmo essa música composta por Chico César.
“Deus Há de Ser” (pop rock, 2018) – Pedro Luís
Elza Soares não foi a primeira pessoa na música brasileira a cantar que Deus é mulher. Em 1989, Cazuza e Angela Ro Ro estrearam uma parceria com “Cobaias de Deus”. Num dos versos do dolorido e pessimista blues, a dupla afirmava: “Nas mãos de Deus mulher/ De um Deus de saia”. Mas a perspectiva de Elza é justamente outra. O título disco da cantora, lançado em 2018, foi retirado da música “Deus Há de Ser”, de Pedro Luís, que encerra a última das 11 faixas de “Deus É Mulher”. Ao longo da canção, Elza afiança: “Deus é mãe/ (...) Transforma qualquer homem em menino/ (...) Deus há de ser fêmea/ Deus há de ser fina/ Deus há de ser linda”.
“Deus Cuida de Mim” (gospel, 2022) – Kleber Lucas
Caetano Veloso voltou ao disco após quase uma década longe de um trabalho de inéditas. O tom adotado foi eminentemente político, o que não assustou ninguém que conhece a trajetória do bardo tropicalista, sempre embrenhado nas questões da formação sociocultural do Brasil. Intitulado “Meu Coco”, o álbum trouxe uma lavra de inéditas que homenageou parceiros de longa data como Gil, Milton Nascimento e Gal, além de prestar reverência a talentos da nova geração como Marília Mendonça, Gloria Groove e Pretinho da Serrinha.
“Não Vou Deixar” se apresentou como a faixa mais incisiva, com um clipe impagável em que Caetano, através de expressões faciais, revela sentimentos. Já em 2022, voltou a surpreender, ao gravar, com o cantor gospel e compositor Kleber Lucas, a religiosa “Deus Cuida de Mim”, numa parceria inusitada para quem, ao longo da carreira, sempre se declarou ateu. “Quem é ateu e viu milagres como eu”, cantava Caetano na inebriante “Milagres do Povo”, lançada em 1985.
*Bônus: “Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho.
Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.