Desde os primórdios, a música popular brasileira tem a maternidade como um de seus temas preferidos. A figura materna aparece, desde a década de 1950, em letras que expressam toda a diversidade do país. As abordagens são inúmeras e refletem, justamente, essa pluralidade. Do romantismo à denúncia, passando pela homenagem, todas as mães foram cantadas por nossos músicos.
Wilson Batista, por exemplo, revelou a realidade de milhões de mães condenadas a cuidar de seus filhos sozinhas, sem nenhum suporte. Já Cássia Eller emprestou sua “voz de trovão”, como dizia Rita Lee, a uma canção feita especialmente por Renato Russo para seu filho. Enfim, o que não falta são músicas inspiradoras para celebrar e refletir sobre o Dia das Mães.
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“Mãe Solteira” (samba, 1954) – Wilson Batista e Jorge de Castro
Wilson Batista nunca teve vergonha ou medo de abraçar os temas mais ásperos, ou seja, nunca mascarou a realidade. Talvez, por isso, a tragédia apareça tão naturalmente em suas músicas. O drama da Maria que ateia fogo às próprias vestes anuncia a hipocrisia de uma sociedade preconceituosa, que pratica a violência de maneira massacrante.
Composto em 1954, em parceria com Jorge de Castro, esse samba gravado por Gilberto Gil avisa, logo, no enunciado: “Hoje não tem ensaio, na escola de samba, o morro está triste, e o pandeiro calado”. Maria foi condenada ao martírio por uma situação que atinge milhões de mulheres brasileiras: ser mãe solteira. A música foi lançada, originalmente, na voz de Roberto Silva, o “príncipe do samba”, e ganhou as regravações de Joyce, João Nogueira e Martinho da Vila.
“Mãe, Eu Juro” (samba, 1957) – Adoniran Barbosa e Marques Filho
É interessante que a composição “Mãe, Eu Juro”, de 1957, tenha em seu registro oficial o nome de dois desconhecidos da música popular brasileira. Peteleco e Marques Filho eram, na verdade, Adoniran Barbosa e Noite Ilustrada. Acontece que o primeiro tinha, por hábito e brincadeira, registrar canções em nome de seu cachorrinho, e, o segundo, era um então iniciante que não havia adotado ainda o nome pelo qual ficaria conhecido como o cantor dos sucessos “Volta por Cima” e “Leva Meu Samba”, dentre outros. Nesta sensível composição, a mãe aparece como confidente de um relacionamento abusivo. A filha promete não insistir mais no caso. Além disso, o samba revela o ambiente de violência doméstica e o machismo já tão presente àquela época. Foi lançada por Neyde Fraga e regravada pela cantora Célia, além do próprio Adoniran Barbosa.
“Mamãe” (bolero, 1959) – Herivelto Martins e David Nasser
O jornalista David Nasser e o compositor Herivelto Martins compuseram, juntos, um sem número de canções de sucesso. A maioria delas, no entanto, versava sobre os amores desfeitos, das paixões que não deram certo, e por aí vai, especialmente inspiradas na relação de Herivelto com a cantora Dalva de Oliveira. Porém, em 1959, os dois compuseram um bolero em elegia às mães, que, pela simplicidade e descrição dos costumes daquela época, rapidamente mostrou seu poder de identificação com uma expressiva parcela do público. Tudo isso sublinhado pela interpretação magnífica e passional de Angela Maria. Mais tarde a música foi gravada em dueto com Agnaldo Timóteo, também versado em canções para homenagear as mães. “Ela é a dona de tudo, é a rainha do lar…”, canta a dupla, entusiasmada.
“Trem das Onze” (samba, 1965) – Adoniran Barbosa
Escrita em 1965 por Adoniran Barbosa e famosa na interpretação peculiar do grupo Demônios da Garoa, a música “Trem das Onze” já foi eleita aquela que melhor representa os moradores da cidade de São Paulo. Um detalhe que não escapa a nenhum ouvinte deste clássico da canção brasileira é a menção à mãe do protagonista. Tudo porque ela é o real motivo para que o encontro com a namorada tenha que ser interrompido.
O que também explica a forte ligação dos paulistas com a música, afinal, assim como Adoniran, muitos são descendentes de italianos, e todos sabem o papel e a relevância da mãe nesta cultura. O que há de mais especial na letra, no entanto, é que este dilema ganha contornos cômicos, e não dramáticos, na maneira subliminar em que Adoniran era craque. A música foi regravada por Gal Costa, Ivete Sangalo e Caetano Veloso, etc.
“Mamãe Coragem” (tropicália, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicalia ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil; nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome “Tropicália”; no cinema por Glauber Rocha; e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa; embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do Cinema Novo e do Teatro Oficina e de Arena.
Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento pelo qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e na crença de melhores oportunidades de vida no Sul do país.
“Mãe (Mãe Solteira)” (vanguarda, 1976) – Tom Zé
Tom Zé abre o violão e de lá retira repiques e passarinhos. Abre a saia e retira de si uma moça prendada, aquela da música “Menina, Amanhã de Manhã”, referência à ditadura. Ironias à parte, o mais ácido dos tropicalistas, como cansaram de defini-lo, não se enquadra. “Só posso ser útil se eu apenas oferecer aberturas”, explicou ele melhor do que qualquer um. A performance do artista guarda íntima ligação com o discurso. “Cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante”, definiu certa vez. Baiano de Irará, ele compôs, em 1976, a pungente “Mãe (Mãe Solteira)”.
“Mãe” (MPB, 1978) – Caetano Veloso
Dez anos após o lançamento de “Mamãe Coragem”, e novamente pela boca de Gal Costa, o compositor Caetano Veloso, desta feita sozinho, demonstrava a saudade do lar e da figura materna, em que os filhos invariavelmente encontram ou transferem a imagem e expectativa do conforto, aconchego e proteção. Exilado em Londres pela ditadura militar imposta no Brasil a partir de 1964, o compositor experimentava e exprimia a solidão por palavras soltas que quando condensadas constroem um mosaico de desejos e intenções.
A imagem de que o filho, mesmo homem feito, permanece criança no coração da mãe, também emerge desta poesia. A música foi regravada pelo próprio Caetano Veloso, o cantor Djavan e, mais tarde, a cantora Cida Moreira, no álbum “A Dama Indigna”. Dona Canô, mãe de Caetano e Maria Bethânia, morreu em 2012, aos 105 anos.
“Mulher Valente É Minha Mãe” (samba, 1980) – João Nogueira
João Nogueira (1941-2000) foi o típico sambista carioca ortodoxo e praticamente, como ele deixava claro na letra de “Eu Não Falo Gringo”, parceria com o bamba Nei Lopes, lançada em 1986: “Eu não falo gringo/ Eu só falo brasileiro/ Meu pagode foi criado/ Lá no Rio de Janeiro/ (…) Eu aposto um ‘eu te gosto’/ Contra dez ‘I love you’/ Bem melhor que hot dog/ É rabada com angu”, cantava, renovando o discurso de Noel Rosa (1910-1937) em “Não Tem Tradução”, música de 1933 – que ele também regravaria –, composta com Ismael Silva (1905-1978), quando a culpa então recaía sobre o insurgente cinema falado. E, em 1980, ele lançou o samba “Mulher Valente É Minha Mãe”.
“1º de Julho” (MPB, 1994) – Renato Russo
Outro importante nome do rock nacional, Renato Russo, escreveu uma canção para homenagear a maternidade de uma das maiores roqueiras brasileiras em todos os tempos. Quebrando qualquer expectativa e estereótipo Cássia Eller deu à luz, no dia 1º de julho, ao seu filho Francisco, conhecido desde o início e chamado carinhosamente como Chicão. Com a data do nascimento, Renato Russo batizou a música, que servia para alinhavar os sentimentos em relação à mãe e em relação ao filho, e como essas vidas, ao se tocarem, modificam-se mutuamente.
Outra riqueza da letra e da melodia é percorrer os diversos caminhos e as possibilidades infinitas que se abrem na vida para as pessoas. Da nossa MPB ao rock, do grito à suavidade, aparece a imagem de uma mãe dedicada, e, sobretudo, do amor. A música também foi gravada pela Legião Urbana em 1994.
“Mama África” (MPB, 1995) – Chico César
Chico César conta que estava em um táxi quando melodia e letra de “Mama África” apareceram em sua cabeça e, sem estar munido de lápis, caneta, ou um gravador, começou a repeti-las insistentemente na cabeça para não esquecer, deixando inclusive de dar atenção à irmã.
Natural de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, a inspiração apareceu quando, de mudança para São Paulo, observou, em um grande mercado, diversas mães que em meio ao trabalho também tinham que se preocupar em amamentar os filhos, cuidar deles e se atentar para com todas as necessidades da prole.
Daí os versos que descrevem essa realidade. No fundo a música é uma homenagem não só à figura da mãe, mas, acima de tudo, um hino à coragem da mulher brasileira, que contra todos os preconceitos e percalços traça o seu caminho com determinação e coragem.
“Toda Humanidade Nasceu de Uma Mulher” (MPB, 2014) – Vanessa da Mata
O Brasil ainda vivia sob o domínio de uma ditadura militar quando Gal Costa tornou-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira. “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, era uma das faixas do icônico álbum “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor” – paradigma do movimento tropicalista – e trazia em seu refrão o trecho “tente entender tudo mais sobre o sexo”.
Decorridas décadas e até séculos dos acontecimentos descritos, o prazer da mulher, especialmente aquele sexual, parece ainda ocupar o lugar de tabu na prateleira dos costumes, mas há quem insista em mudar o curso dessa história. Em 2014, Vanessa da Mata lançou “Toda Humanidade Nasceu de Uma Mulher”, cujo título não poderia ser mais explícito. Em outras palavras: a mulher é a verdadeira mãe da humanidade.
“Minha Mãe É Uma Peça” (jazz, 2014) – Zé Ricardo
Dona Hermínia tornou-se um clássico do humor nacional. A personagem criada por Paulo Gustavo é, certamente, o maior sucesso da carreira do comediante que morreu precocemente em 2021, aos 42 anos, vítima de Covid-19. Nesse longa-metragem, as desventuras de uma tradicional família suburbana contam com Mariana Xavier, Rodrigo Pandolfo, Herson Capri, Ingrid Guimarães e Suely Franco no elenco.
O filme pode ser visto na Globoplay, assim como as outras duas continuações da saga. Em 2014, o músico Zé Ricardo compôs o tema da peça de então maior sucesso do Brasil. Já em 2019, ela ganhou uma versão em jazz para a segunda continuação do filme, com interpretação especial de Dona Déa Lúcia, inspiradora da personagem do filho Paulo Gustavo.
“Mãe” (rap, 2015) – Emicida
O rapper Emicida investiu em uma verdadeira produção cinematográfica para homenagear a sua genitora. Nas imagens do videoclipe de “Mãe”, ele literalmente atravessa o tempo e surge como a criança que descreve na letra. Antes do disco mais recente de Elza Soares, o compositor já declarava: “Deus é uma mulher preta”. A produção tem a participação mais do que especial da própria mãe de Emicida. Dona Jacira aparece recitando um poema sobre a maternidade. No final, mãe e filho se movem dentro de um retrato. A música foi lançada no álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, o quinto de Emicida.
“Deus Há de Ser” (pop rock, 2018) – Pedro Luís
Elza Soares não foi a primeira pessoa na música brasileira a cantar que Deus é mulher. Em 1989, Cazuza e Angela Ro Ro estrearam uma parceria com “Cobaias de Deus”. Num dos versos do dolorido e pessimista blues, a dupla afirmava: “Nas mãos de Deus mulher/ De um Deus de saia”. Mas a perspectiva de Elza é justamente outra. O título disco da cantora, lançado em 2018, foi retirado da música “Deus Há de Ser”, de Pedro Luís, que encerra a última das 11 faixas de “Deus É Mulher”. Ao longo da canção, Elza afiança: “Deus é mãe/ (...) Transforma qualquer homem em menino/ (...) Deus há de ser fêmea/ Deus há de ser fina/ Deus há de ser linda”.
“Duas Mães” (balada, 2021) – Lan Lanh e Nanda Costa
Prestes a serem mães de gêmeas, Lan Lanh e Nanda Costa lançaram “Duas Mães”, parceria do casal. “Não tenha medo/ Nós somos fortes/ Tem duas mães/ Você tem sorte”, diz a letra. “A canção nasceu no ano passado. Nanda me pediu, de aniversário, uma música. Na véspera do dia 24 de setembro, comecei a compor a música. Lancei para o universo: ‘viver um sonho, nosso desejo’. E a canção veio na velocidade de uma estrela cadente, em forma de oração. Pronto. E vai chegar nos braços dela, e vai descansar nos braços meus. Hoje, já podemos escutar o coração das nossas filhas batendo forte com o meu tambor no single ‘Duas Mães’. Pra gente, uma prece de amor”, conta Lan Lanh.