Gouveia estava na feira hippie e Gui Ventura na sua escola, em um festival. Enquanto um escutava pela primeira vez “Eu Te Devoro”, o outro tocava e cantava a mesma música. Tempo e espaço não eram os mesmos, mas a canção une as primeiras lembranças de ambos sobre Djavan, à maneira cíclica e circular do tempo, segundo a perspectiva de matriz africana.
“Foi muito impactante, me trazendo uma experiência estética e sonora, somada a um dia de lazer, que me proporcionou uma estranha comoção, difícil de exprimir em palavras, despertando curiosidade sobre quem estava naquelas caixas sonoras”, rememora Gouveia.
Um ano depois do contato inicial, Gui Ventura teve a oportunidade de se aprofundar na obra de Djavan quando seu irmão chegou em casa com um disco do Trio Amaranto, “Retrato da Vida”, que homenageava o futuro ídolo, e logo vasculhou outros vinis no acervo do pai. Era o começo da descoberta.
Agora, como parte do Coletivo Margem, também formado por Raphael Sales e Cassiano Luiz, eles se unem para abrir a nova edição do Sarau Minas Tênis Clube e saudar a beleza poética do compositor alagoano, criador de sucessos atemporais como “Fato Consumado”, “Meu Bem Querer”, “Flor de Lis”, “Lilás”, “Oceano”, “Açaí”, e muitos outros, todos com potencial de integrar o repertório.
Estilo. Foi Djavan quem fez Gouveia querer compor e cantar. Trabalhando em um shopping popular de Belo Horizonte, ele se encantou pela discografia do músico. Essa noção de musicalidade e poética afro-brasileiras levou Gouveia a “ampliar horizontes para além do que chegava até mim na periferia”, explica.
“Djavan é um artista alagoano, preto e de origem periférica que conseguiu vencer o racismo estrutural e alcançar a bolha da indústria corporativa fonográfica em uma época em que se produzir e financiar como artista independente era praticamente impossível”, aponta.
Com “A Voz, o Violão, a Música de Djavan”, de 1976, o artista estreou em disco já causando furor por seu estilo único, a bordo de melodias envolventes e letras intricadas, ou, como sugerem Gouveia e Ventura: popular e sofisticado numa só tocada. “Djavan prova que ser popular é compreender, em alguma medida, as emoções do povo. E que uma música, para ser sofisticada, não precisa ser impopular. Ele nos ensina a ser completamente simples”, analisa Ventura.
Gouveia aponta mais características peculiares. “Djavan fala de amor sem ser óbvio, nos faz dançar e emergir em um universo sublime, subjetivo e poético com a propriedade de quem conhece seu povo. É um artista com características únicas que ajudou a elevar, popularizar e romper com os dogmas criativos da música brasileira”, vaticina.
Repertório. Canções que “fazem dançar e emocionar na mesma medida” estarão presentes no repertório que Gui Ventura divide em três atos, com direito a momentos solo onde cada integrante dá voz àquilo que mais o toca. A memória coletiva será contemplada com os habituais hits que ecoaram com força no rádio e nas novelas durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, com direito a arranjos eletrônicos que injetam ousadia em faixas consagradas. Por fim, o Coletivo Margem brinda o público com composições autorais da trupe.
“Estamos num momento do país em que existe uma linha imaginária: de um lado temos o presente com uma certa secura, desesperança e cansaço da labuta decorrentes de uma crise política e econômica; do outro, as eleições que se aproximam apontam uma sensação de esperança, de novas possibilidades e de um recomeço”, detalha Ventura. Na última quinta, Djavan declarou seu voto em Lula à presidência da República, na disputa que ocorre domingo.
“Dar a oportunidade de as pessoas cantarem um Brasil de amor poético, que faz parte da memória coletiva, é oferecer colo, ainda que por alguns instantes. Vamos trazer esse Brasil do amor e reiterar a importância de um Brasil negro, alicerce da cultura nacional”, completa Ventura.
Negritude. A música brasileira está repleta de artistas negros com qualidades diversas e em sua própria base. De Sinhô a Itamar Assumpção, passando por Sandra de Sá, Alcione, Cartola, Luiz Melodia, Ataulfo Alves, Gilberto Gil, Zezé Motta, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Péricles, e muitos outros, numa lista infindável.
“É necessário que haja fomento de obras de artistas pretos num país que tem por costume histórico o apagamento identitário e cultural de um povo que é majoritariamente negro”, opina Gouveia. Nesse ponto, ele analisa a importância de Djavan num contexto de discriminação cotidiana e velada.
“O Djavan se destaca e se torna símbolo de dignidade, elegância e potência artísticas pelo fato de sempre ter ‘brincado’ com as diversas expressões espontâneas da nossa música. Seus sambas sincopados, sua influência da música negra norte-americana, sua valorização e busca por uma expressão afro-brasileira, são de suma importância para a autoestima, a identidade e a simbologia cultural para os povos negros brasileiros”, sublinha.
Ventura vai pelo mesmo caminho, e levanta outra bola fundamental. “Há um costume feio de comemorar ou homenagear figuras somente após a morte. Outro equívoco é pensar a ancestralidade como algo tão somente do passado, quase que numa forçosa folclorização daquilo que é vivo. O Djavan é ancestral, é o presente e é o futuro”, garante o entrevistado.
“Ele é autor de obras que sempre evidenciaram em suas letras os povos originários, a África em diáspora, a importância vital e sustentável da nossa biodiversidade, provocando reflexões sobre os afetos em diversas dimensões das relações. De modo que, com sua obra, ele faz política, ao disputar uma narrativa que reafirma nossa vasta potência cultural. E que afronta estigmas racistas do que é um homem negro. Djavan realizou tudo isso com generosidade ao ouvinte, fazendo uma música complexa, mas acessível, com uma ternura e swing convidativos”, finaliza.
Serviço.
O quê. Coletivo Margem homenageia Djavan no Sarau Minas Tênis Clube
Quando. Nesta segunda (3), às 20h
Onde. Centro Cultural Unimed-BH Minas (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. R$5 (inteira) na bilheteria do teatro ou pelo