A voz rouca e inconfundível de Angela Ro Ro cantarola ao telefone: “ó como dói, ó como dói...”. Ao ouvir os versos da música composta por Gilberto Gil em 1980, para um musical infanto-juvenil que passou por Salvador e outras cidades brasileiras, Angela imediatamente correu ao pianinho que mantinha em Saquarema, no litoral do Rio, para compor um dos maiores sucessos da sua carreira: “Dói em mim saber que a solidão existe/ E insiste no teu coração”, cantou.
Foi a partir de “Meu Amigo, Meu Herói”, lançada por Zizi Possi, com quem Angela viveu um conturbado relacionamento, e incluída na novela “Plumas & Paetês”, da Rede Globo, que nasceu “Só Nos Resta Viver”, clássico absoluto desde que veio ao mundo, no mesmo ano de 1980, com toda urgência de uma obra-prima. A dor no coração do amigo herói tocou não apenas Angela, mas uma legião de fãs.
Fonte. “Impressionante como surgiu uma canção tão simples e que é do agrado do público até hoje. Ela veio pra ficar. Da fonte que veio, tinha que dar certo. Gilberto Gil é uma pessoa presente na minha vida e na de tantas pessoas há tantas décadas que o pouco que eu tenho de contato pessoal com ele foi sempre de uma generosidade infinda”, conta Angela.
Esta e outras histórias ela apresenta ao público nesta quinta (22), na retomada do projeto “Salve Rainhas”, idealizado por Pedrinho Alves Madeira, que terá condução da jornalista Camila de Ávila. “Estou gratíssima e me sentindo maravilhosa por esse projeto e outras pessoas do meu gosto musical me considerarem uma rainha da música brasileira, eu acho isso sensacional! Todo e qualquer reconhecimento é muito positivo para o profissional, seja ele de que ofício for, ainda mais sendo artista que doa não só estudos, esforços e trabalho, mas o seu amor, como eu doo o meu humilde amor à música desde 5 anos de idade”.
Estreia. Foi ainda criança que ela se iniciou no teclado, passando para acordeom e piano logo em seguida, tudo com o apoio da família. Em casa, ouvia tangos, boleros, samba-canção, baião, blues, jazz, rock e o que mais viesse através das antenas do rádio ou da vitrola. “Aqui no Brasil nós temos uma fonte inesgotável de talentos. Tradicionais, mais antigos, que estão fazendo a música vibrar nas nossas emoções há décadas, assim como muita gente nova e talentosa que está aparecendo. Tem muita gente que merece ser coroada”, celebra.
Além do bate-papo, Angela promete brindar o público com canções cuja perenidade o tempo não esmaeceu, a exemplo de seu primeiro disco, de 1979, considerado, por muitos especialistas, a melhor estreia fonográfica da música brasileira. Antes de entrar em estúdio, a intérprete já era uma figurinha carimbada e persona lendária das noites cariocas. O repertório da noite deve reavivar esse período.
Repertório. “O projeto é bastante exótico, no bom sentido, porque tem entrevista, bate-papo, o que pra mim já é natural. Dentro do meu show, eu sempre sou muito presente, em contato direto com cada um da plateia,” garante. “Pra mim vai ser uma delícia! O repertório vai ser de acordo com as coisas que serão abrangidas, desde o início da minha carreira”, pontua.
Fiel escudeiro há mais de 30 anos, o pianista Ricardo Mac Cord acompanha a cantora no palco. Ele também é parceiro de Angela em canções inéditas, que já estão no forno, mas não é o único. Angela pretende tirar o véu das novidades até o ano que vem, no máximo. “Temos surpresas que vamos levando adiante, algumas estão bem adiantadas, esperando que a minha saúde seja mais forte do que a minha preguiça”, graceja.
Autobiografia. O sétimo pecado capital é também apontado como responsável pela aguardada autobiografia da compositora ainda não ter chegado às prateleiras físicas e virtuais. “Bom, já escreveram várias biografias minhas, né? Não sobre Angela Maria, mas sobre Angela Ro Ro já escreveram tanta coisa que a hora que eu escrever a vera verdade não sei como ela será aceita”, provoca a artista, batizada Angela Maria Diniz Gonsalves e rebatizada Angela Ro Ro pela música brasileira.
O título da empreitada literária ela já tem na cabeça: “Meus Primeiros 70 Anos”, uma forma jocosa de lidar com o desafio de recorrer a memórias de uma vida intensa, pautada pela irreverência. “Espero que seja um livro engraçado e que seja lançado, pelo menos, até o ano que vem, porque o tempo corre muito e eu sou muito preguiçosa”, reforça.
Política. O tempo que não agrada Angela é o da política. “Esse negócio de momento político fica difícil de explicar, porque eu não estou enxergando. Desde antes de 2019 que eu não estou vendo bem um ‘momento político’, mas uma situação indigesta para o povo brasileiro, que está sofrendo, passando miséria, sem casa para habitar, se abrigar, sem comida para se alimentar, sem água potável em tantos lugares”, desabafa.
Outra preocupação recorrente de Angela é com a destruição do meio-ambiente, fato que ela expressou em músicas como “Querem nos Matar”, parceria com o amigo Sérgio Bandeyra, lançada em 1982, e que vaticina: “Ah, porque liquidar a Terra?/ Se ela é Mãe que a tudo encerra?”. Outro exemplo é “Nossos Enganos”, com Ricardo Mac Cord, de 2006: “A raça humana ingrata/ Só fez ferir a Terra/ De um jeito que não haja mais amanhã...”.
Natureza. “Nossa selva está sendo destruída, nossa mata, desde a atlântica, as serras todas... As Minas Gerais em que não podem haver mais tantos ‘acidentes’, entre aspas, acabando como Brumadinho, Mariana, deixados ao léu, ao despropósito e ao desprezo”, dispara, em referência a rompimentos de barragens de mineradoras nas duas cidades mineiras, que acabaram com centenas de mortes e um lastro de devastação ambiental irreparável.
“Espero que o povo brasileiro que vota tenha consciência, empatia e compaixão não só a si mesmo, mas que entenda que a grande maioria do povo brasileiro está sofrendo muito nesses últimos tempos”, conclama.
Terror. Angela Ro Ro sentiu na pele a truculência policial dos anos de chumbo da ditadura militar, violências que ela atribui à homofobia. Primeira cantora brasileira a assumir a homossexualidade desde que estreou em disco, ela foi espancada por policias militares e sofreu tentativa de estupro em mais de uma ocasião, o que acarretou em perda da visão de um olho e diminuição considerável da audição, episódios por si só traumáticos, ainda mais para uma cantora que depende do que ouve e canta.
“Eu não quero comparar nada a um terror que foram 21 anos de ditadura militar num país continental, maravilhoso como o nosso. Tortura nunca mais! Estabelecer como regime político uma coisa que é aterrorizadora, apavorante, cruel, desumana e covarde não pode ser comparado a nada, nem esta bagunça que está reinando. Toda arbitrariedade deve ser punida”, declara.
Liberdade. “Precisamos de liberdade e, acima de tudo, alimentação, água potável, proteção às nossas matas, aos nossos jovens, crianças, velhos e doentes. Precisamos de educação e oportunidades. Dar a uma pessoa que vem do nada a chance de se tornar tudo, dependendo do esforço dela. O Brasil precisa respirar, se alimentar e educar. E vamos parar com essa história de armas em mãos de civis ou militares e autoridades despreparadas para os cargos. Viva a nação brasileira libertária e liberta dessa miséria”, encerra, com a força e o vigor juvenil de quem inicia os seus primeiros setenta anos. Que venham mais.
Serviço.
O quê. Projeto “Salve Rainhas” recebe Angela Ro Ro
Quando. Nesta quinta (22), às 20h
Onde. Grande Teatro SESC Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)
Quanto. De R$ 40 (meia) a R$ 120 (inteira) pelo