Ouvindo...

Mulheres e o futebol: uma voz cada vez mais alta nas arquibancadas do Brasil

Decisão de proibir a presença do público masculino no Couto Pereira colocou em primeiro plano o crescente protagonismo da mulher no esporte mais popular do país

Coletivo feminino Grupa defende a maior inclusão das mulheres no futebol, em especial no Atlético

Era para ser mais uma punição a torcedores violentos, mas se transformou em uma das imagens mais marcantes da história recente do futebol brasileiro. No domingo (15), o Coritiba deveria estrear no Campeonato Paranaense com os portões fechados, mas em vez disso jogou diante de um estádio repleto de mulheres e crianças.

As imagens da festa nas arquibancadas do Couto Pereira se espalharam pelo Brasil e colocaram em primeiro plano uma realidade que muita gente ainda tenta ignorar: o crescente protagonismo das mulheres para o esporte mais popular do país.

Assista ao show da torcida do Coxa, formada por mulheres e crianças, no Couto Pereira:

A decisão de abrir os portões do Couto Pereira apenas para mulheres e crianças, de até 12 anos, foi tomada pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Paraná (TJD-PR). Coritiba e Athletico-PR haviam sido punidos pelos confrontos entre torcedores no clássico paranaense disputado em 16 de fevereiro de 2022. Mas em vez de jogarem com portões fechados, a Justiça desportiva paranaense optou por proibir apenas a entrada do público masculino no estádio.

A medida foi aplaudida por todo o país. Em Minas Gerais, as grandes torcidas possuem coletivos femininos que promovem iniciativas para normalizar a presença da mulher nos estádios de futebol: a Grupa, de atleticanas, e a Maria Tostão, de cruzeirenses, são dois exemplos de movimentos que trabalham arduamente para derrubar as barreiras que ainda afastam as torcedoras do esporte mais popular do país.

E ambos os movimentos receberam de braços abertos a decisão da Justiça do Paraná de abrir os portões dos estádios só para mulheres e crianças. “Com esse acontecimento histórico, não tem mais qualquer desculpa, está já comprovado por A+B: as mulheres também são protagonistas do futebol e vão ao estádio pelo futebol. Trouxe ainda mais visibilidade da paixão das torcedoras, que tocam seus instrumentos, cantam, apoiam o time, sustentam o clube histórica e financeiramente”, afirma o coletivo Maria Tostão, que faz parte do grupo Resistência Azul Popular.

“Para a Grupa, a solução foi criativa e carregada de simbolismo. Embora nós não estejamos isentas de, em alguma medida, reproduzir a cultura da masculinidade tóxica do futebol, ficou muito evidente como a presença maciça de mulheres e crianças transmite uma percepção de segurança e de exercício saudável do torcer. Além disso, a medida dialoga com uma reivindicação antiga nossa, de que o fomento à presença de mulheres e crianças nos estádios contribui para um ambiente mais inclusivo e tolerante”, analisa o coletivo de atleticanas.

Relevância histórica

O protagonismo da mulher no futebol remonta aos primórdios da modalidade no Brasil. Muitas mulheres tiveram papel relevante na fundação de clubes tradicionais do país, mas ainda assim o ambiente sempre foi hostil para as torcedoras. Ao contrário dos homens, a presença do público feminino nas arquibancadas nunca foi considerada normal por parte considerável dos torcedores.

Ato tão natural para os homens, o direito a torcer para um clube de futebol teve de ser conquistado com muito esforço pelas mulheres. E demonstrar esta paixão é um esforço contínuo. Por isso, a medida tomada pela Justiça do Paraná tem um simbolismo forte para torcedoras de todo o Brasil.

"É uma oportunidade para demonstrar que as mulheres podem torcer exatamente como a tradição masculina no futebol manda, e também podem torcer de outra forma se assim quiserem. Vale lembrar que isso só aconteceu por força de uma decisão judicial, resultado de um triste episódio protagonizado por homens”, diz o coletivo Maria Tostão, que alerta para o contínuo esforço que deve ser feito para a inclusão das mulheres no futebol.

“Pegaram limão da punição pela briga das torcidas e fizeram uma limonada, entretanto não é uma política sustentável de inclusão das mulheres ou contra a discriminação e sim um evento isolado, mas muito rico e que certamente vai entrar para a História. Esperamos que não precise haver punição às torcidas organizadas para que mulheres, e qualquer outro grupo que se coloque à margem das torcidas tradicionais, possam torcer livremente”, conclui o Maria Tostão.

Os movimentos de torcedoras reivindicam ainda uma maior participação dos clubes neste processo de inclusão. No dia 8 de Março de 2022, Dia Internacional da Mulher, o Atlético homenageou a Grupa na sede administrativa do clube com uma placa comemorativa. Mas, mais importante, se reuniu com as integrantes do movimento para ouvir as demandas de uma parcela significativa da torcida.

“Além da paixão pelo Atlético, nós nos unimos muito para que o estádio e o futebol sejam um meio menos hostil às mulheres. Nós queremos ser contempladas nas políticas do clube, no estádio, na linha de uniformes. A Grupa lida com tudo isso”, afirmou a escritora Laura Conrado, após a reunião com representantes do Atlético.

A luta das mulheres para ter sua relevância no futebol reconhecida está longe de acabar. Mas o trabalho incansável de torcedoras e de movimentos coletivos faz com que sua voz ecoe cada vez mais alto nas arquibancadas pelo Brasil. E como ficou comprovado, no domingo passado (15), em Curitiba, o esporte mais popular do país só tem a ganhar.

Jornalista, mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação pelo ISCTE-IUL (Lisboa), com passagens por TV Globo | SporTV, Jornal Hoje em Dia, Agência EFE (Espanha), BBC News Brasil (Inglaterra) e Sport TV (Portugal)