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A Lei Eusébio de Queirós e a escravidão como traço inafastável da formação do Brasil

Em 4 de setembro de 1850, o Império proibiu o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas por meio da Lei nº 581, mas isso não se deu por súbita conversão moral

Lei Eusébio de Queirós: fim do tráfico de escravos

Neste 4 de setembro de 2025 completam-se 175 anos da Lei Eusébio de Queirós. Neste mesmo dia em 1850, o Império finalmente proibiu o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas por meio da Lei nº 581, mas isso não se deu por súbita conversão moral. A motivação maior naquele momento foram as pressões britânicas, rearranjos econômicos internos e a persistente resistência negra. O texto legal previa a necessidade de “estabelecer medidas para reprimir o tráfico”. Foi o começo do fim dos navios, não o fim das correntes.

Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (Luanda, 1812 - Rio de Janeiro, 1868) foi magistrado e político, chefe de Polícia da Corte (1842 – 844) antes de se tornar ministro da Justiça (1848–1852). No cargo, patrocinou no Parlamento o projeto que resultou na Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, e organizou sua execução após a sanção imperial, valendo-se da experiência policial para desarticular as redes do tráfico. A lei leva seu nome porque foi proposta e articulada sob sua tutela ministerial e porque ele se tornou o rosto público da repressão ao tráfico. No mesmo ano, foi o ministro referendário do Código Comercial de 1850 (quase 200 anos depois, parte segue vigente, sobretudo o Livro Segundo, Do Comércio Marítimo, com alterações posteriores).

É preciso interpretar os fatos à luz da contextualização histórica. Já havia a lei de 1831, a célebre “lei para inglês ver”, que declarava livres os africanos desembarcados após aquela data, mas ela foi sistematicamente burlada (infelizmente, não é novidade o descumprimento sistemático das leis em terras brasileiras). A virada só se impôs quando o Parlamento britânico aprovou o Ato Aberdeen, em 1845, autorizando a marinha real britânica, a pomposa Royal Navy, a apreender negreiros em alto-mar e nas proximidades do litoral brasileiro. Entre 1845 e 1850, os cruzadores britânicos estrangularam a logística do tráfico. A Lei Eusébio de Queirós nasce, portanto, desse contexto de coerção internacional e de ação estatal mais efetiva.

Extinguir o tráfico, porém, não extinguiu a escravidão em nosso país. A partir de 1850, intensificou-se o tráfico interno de cativos, arrancando famílias do Norte e do Nordeste rumo às frentes do café no Sudeste. Foi uma migração forçada que reconfigurou demografias, economias e memórias locais. Essa engrenagem só começaria a ser tocada pelas leis graduais: o Ventre Livre, de 1871, que declarava livres os filhos de mulheres escravizadas, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, que libertava os cativos com mais de 60 anos. O ciclo se encerrou juridicamente em 13 de maio de 1888, quando a Lei Áurea aboliu a escravidão. Lembremo-nos de que o Brasil foi último país das Américas a fazê-lo, a última nação americana a pôr fim a quase quatro séculos de escravidão.

No caminho até 1888, o abolicionismo foi uma frente ampla, com claro protagonismo negro. Luís Gama transformou o direito em alavanca para emancipar centenas; José do Patrocínio operou a mobilização pública; André Rebouças articulou uma engenharia social e técnica a favor da cidadania; Maria Firmina dos Reis escreveu com firmeza e talento. A província do Ceará antecipou a ruptura, abolindo a escravidão em 25 de março de 1884, após a greve dos jangadeiros liderados por Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar (que hoje dá nome a um importante centro de arte e cultura na capital cearense), que se recusaram a embarcar cativos rumo ao sul. É sempre bom lembrar: a abolição não brotou do favor ou mesmo da benevolência imperial; foi obra de muita luta, resistência sistematizada, organização e alianças, com forte capilaridade social.

O momento de 13 de maio condensou também um rearranjo das elites. O senador João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, voz do escravismo no Senado, teria dito à Princesa Isabel após a sanção: “A senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono”. Joaquim Nabuco, por sua vez, registrou na sua obra clássica O Abolicionismo que os fazendeiros ressentidos engrossaram as fileiras republicanas. O fato é que a abolição rompeu o pacto escravista que sustentava a monarquia, realinhando interesses e acelerando a crise do Império. Não por acaso, a ruptura consumou-se no ano seguinte, com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889.

Lilia Moritz Schwarcz recoloca escravidão e o racismo no centro da formação nacional e sustenta que, enquanto o racismo estrutural persistir, não há democracia plenamente consolidada. Não basta rememorar os marcos legais; é preciso enfrentar as permanências do mando, do patrimonialismo e da desigualdade que herdamos de um passado escravista. A abolição jurídica foi condição necessária. A igualdade substantiva continua sendo tarefa histórica.

Para compreender a extensão desse desafio, vale recordar o vínculo entre a economia e o cativeiro. Por quase quatro séculos, o Brasil teve sua economia ligada ao trabalho escravo: extração de ouro e pedras preciosas, cana-de-açúcar, criação de gado, plantio e beneficiamento do café. A mão de obra escravizada foi a força motriz dessas atividades. Os fazendeiros tornaram-se o grande sustentáculo econômico do regime imperial, e a própria família real se beneficiou das redes escravistas. A residência da família imperial no Rio, o Paço de São Cristóvão, foi doada em 1808 por Elias Antônio Lopes, comerciante enriquecido com o tráfico negreiro. A abolição, portanto, não cortou apenas uma prática; tocou o nervo de uma economia política do cativeiro.

Em Minas Gerais, a escravidão foi músculo da economia por três séculos. No século XVIII, o ouro e o diamante mobilizaram plantéis nas lavras, faisqueiras e serviços de apoio; no XIX, com a retração da mineração, os cativos foram redirecionados para roças de abastecimento, ofícios urbanos, tropeirismo e, sobretudo, para a cafeicultura da Zona da Mata. No Censo de 1872 Minas registrava o maior número absoluto de pessoas escravizadas do Império: 370.459, cerca de 18,2% da população provincial. A composição étnica refletia os fluxos atlânticos: predominância de africanos da África Centro-Ocidental (Congo e Angola) desde o setecentos, com presença crescente de “moçambiques” no oitocentos; essas matrizes forjaram culturas, pensamentos, artes e irmandades (Rosário, congado) que atravessaram o tempo.

Após a Guerra do Paraguai (1864–1870), em províncias onde as oligarquias não detinham poder absoluto, as teses abolicionistas ganharam fôlego. O Ceará é um exemplo muito relevante: além da greve dos jangadeiros, a mobilização civil pressionou o governo provincial, culminando na antecipação local da abolição. Esse processo ajuda a desfazer a narrativa do “favor”: a transição foi produto de lutas sociais, constrangimentos externos e rearranjos internos, não de benevolência iluminada.

Também importa lembrar que a memória negra organiza um calendário e um sentido político da liberdade. O 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, convoca a olhar para Zumbi e para os quilombos como tradições de autonomia. A história do Brasil não cabe na moldura do “favor” nem na ilusão cordial de uma “democracia racial”.

Dizer isso não diminui a relevância das leis, nem de 4 de setembro nem de 13 de maio. Ao contrário: situa-as numa cadeia de lutas e efeitos. Leis mudam incentivos, reorganizam mercados, redesenham estratégias. A Lei Eusébio de Queirós desarticulou a logística negreira e, paradoxalmente, estimulou o comércio interno. O Ventre Livre e os Sexagenários administraram a transição com parcimônia para os senhores. A Lei Áurea, minimalista, proclamou o fim, mas não desenhou o depois. Reconhecer esse encadeamento é importante para a compreensão mais alargada do nível de complexidade de todo esse processo.

Não se trata de avocar o conceito de “culpa hereditária”, mas de exaltar a ideia de responsabilidade pública diante de efeitos que atravessaram séculos. O 4 de setembro de 1850 não foi um ponto final. Foi apenas a abertura de uma fresta. Ademais, a liberdade jurídica de ontem só se completa quando se converte, hoje, em política de igualdade. Países que aboliram a escravidão antes não se tornaram automaticamente mais justos, mas iniciaram mais cedo um debate que o Brasil retardou. Que a data sirva, enfim, para ir além da mera lembrança e encoraje a fazer da memória um programa de democracia substantiva e geração de oportunidades e justiça.

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Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

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