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Saudade do canalha honesto!

Em tempo de algoritmos e “jogos de azar“, o caráter ”manipulador“ da comunicação é levado à máxima potência

Ninguém tem dúvida de que estamos numa crise. O cenário mundial reúne horror e incerteza. Isso do ponto de vista da ocorrência ou da iminência das guerras, pelo fato de que ninguém sabe exatamente onde a IA vai nos levar, ou dado de que o esgotamento emocional nos tem levado a trocar crianças de verdade por “afetos de plástico”. O fato, todavia, é que há determinadas situações que atravessam e muito o limite do bom senso e da moralidade.

A alusão aqui é clara ao que temos experimentado na CPI das Bets. E isso, não numa crítica gratuita ou despropositada a “esse” ou "àquela” influenciadora digital chamados a depoimento. A questão aqui é provocar uma reflexão sobre os rumos de uma sociedade em que uma “dancinha”, um “Stories”, um“feed” arrumado, ou um “strorytelling” bem contado se tornam salvo conduto para incentivar ao vício.

A Comunicação, em sua essência, sempre teve a ver com “persuasão” e com “manipulação”. Qualquer bebê (se não for de plástico!), que acabou de vir a esse mundo aprende a dominar, seja pela linguagem do riso ou do choro, o comportamento dos pais. A gente sabe, desde muito cedo, que é preciso “vender” bem um produto para alcançar o que se deseja como “valor”. Todo mundo mente um pouco, reveste de brilho ou enfatiza os pontos positivos de algo quando quer convencer.

O problema é que, em tempo de algoritmos, nessa era dos “jogos de azar” e sua promessa de felicidade fácil, o caráter “manipulador” da comunicação foi levado à máxima e perigosa potência. A busca por “ganhar a vida”, hoje, em que todo mundo se sente, de alguma forma perdendo ou perdido, está levando pessoas a vícios e a ruína. . E sim, mesmo que não haja regulação do uso ou da divulgação das bets, ou que não exista proibição explícita delas, permanece a máxima de que a ausência de uma “tipificação” sobre o ilícito não torna, por si só, uma ação moral. Há coisas que não são ilícitas e, nem por isso, deixam de ser imorais.

Há responsabilidade sobre a comunicação! E quem tem palanque, ou “microfone” precisa estar atento a isso. O número de seguidores não é salvo conduto para fazer o que dá na telha! Quando alguém se torna influencer, adquire grande relevância social, e o que passa a estar em jogo não é apenas a possibilidade de aumento de rendimentos, mas também a grande capacidade de mobilização que essa pessoa tem, dado o fato de ela ser uma referência para a população. Somos quem somos porque aprendemos por espelhamento: copiamos padrões, engajamos com ideias que nos fazem sentido, nos inspiramos nos outros. Por isso, quem pode influenciar as “massas” não tem só status e poder, mas uma enorme responsabilidade!

O desafio atual é que, no “vácuo” de sentido em que nos encontramos, “o fetiche pelos influencers”, bem como “a febre com os apps de aposta” nada mais são do que ser facetas e sintomas da mesmas crise. Uma existência de desespero e sem respiro leva a buscar solução em “alternativas” que sufocam. E não, não faz sentido achar normal esse deboche e esse perverso espetáculo! Nem tudo é questão só de mídia, de engajamento ou de likes. Uma pessoa viciada em álcool, em drogas, em jogos cria feridas profundas em si e na própria família.

Vendo o contexto da CPI das Bets, envolvendo a atuação de celebridades e influencers nisso, é possível ver o quanto Nelson Rodrigues tinha muita razão. Isso ao dizer que sentiríamos falta do “canalha honesto”. Essa figura, no pensamento do cronista, era uma espécie de “tipos”, de “ícone” de sujeito que, embora, tenha comportamentos moralmente reprováveis, não se esconde atrás do “humor”, da “virtude” ou “hipocrisia”. O canalha honesto não é “bom só de fachada”, ele assume sua falta, seu limite, sua sagacidade, suas meias-verdades. Bem diverso do que temos visto, hoje, em que interesses pessoas se revestem de descontração e de inocência. Que saudades do tempo em que roubo e engodo não eram disfarçados de diversão e nem de alternativa de investimento...

Precisamos de um pacto pela lucidez, de um interesse genuíno pelo outro! Em tempos em que se valoriza “comunidades engajadas”, é preciso estar “despertos” para o fato de que a dor causada pelos vícios, a tragédia da compulsão por apostas, o desespero de muitos diante da vida não é nada engraçado e diz respeito a cada um de nós. A compulsão em que muitas pessoas hoje se encontram trata-se de um drama real, sério e nosso! Oxalá, com a Graça de Deus, nossa consciência se desperte e lutemos por dias melhores: com alteridade, com compromisso ético e com esperança...

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Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.