Um dos grandes desafios de todos nós é viver o que falamos. Comumente, aquilo que pregamos é facilmente varrido do espírito quando há uma réstia de interesse pessoal. Não foi o que aconteceu ao Papa Francisco, uma exceção nessa selva em que vivemos e de uma rara coragem existencial. Sei que muito sobre ele já foi dito nos últimos dez dias, mas num tempo de tanto uso do nome de Jesus Cristo para semear ódio, morte e preconceito, tenho certa necessidade voraz de render loas a um Santo em vida, ainda que com ligeiro atraso.
No domingo de Páscoa, dia da ressureição e data litúrgica mais importante para os cristãos como eu, assistimos à última aparição do Papa Francisco, visivelmente debilitado, abençoando os fiéis e conclamando pelo cessar fogo em Gaza, onde ocorre um genocídio que insistimos em não ver. No dia seguinte, a notícia de seu falecimento chegou sobre a madrugada.
Esquadrinhada a informação, pus-me a pensar se seria aquele o Papa que mais se aproximou da missão de Cristo nos últimos séculos e, consequentemente, dos direitos fundamentais. Afinal, ele foi um defensor do respeito à diferença, reconhecendo os direitos das minorias, dos refugiados, imigrantes, indígenas e marginalizados inclusive pelas religiões. Despindo-se dos preconceitos que tantas vezes são profanadores dos templos religiosos, em especial em razão de direcionamentos sexuais, recriminou todas as formas de preconceito, assim como o fez Jesus Cristo. Pediu desculpas pelos atos da Igreja Católica, durante o processo de dominação dos povos indígenas na América Latina; defendeu a união civil de pessoas do mesmo sexo, dizendo que todos têm direito de formar uma família; denunciou a destruição ambiental e o aquecimento global, inclusive se solidarizando com as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Enfim, foi um defensor de todos os valores sufragados nas constituições compromissadas com a defesa dos direitos humanos, em suas mais variadas vertentes, como a nossa de 1988.
Revivi então a sua posse, em 13 de março de 2013, quando chocou o mundo, não só por ser o primeiro Papa sul-americano, o primeiro jesuíta e o primeiro a se chamar Francisco, mas por quebrar ritos para estar mais próximo do povo, aparecendo na galeria de São Pedro com uma cruz de ferro e um simples manto branco, sem a mozzeta, a tradicional capa que simboliza o poder dos Imperadores, despido, portanto, das vestes honoríficas, da tradição dos imperadores romanos, como a nos dizer “sou um de vocês”. Desde ali, vimos que estávamos diante de um Papa disposto a trazer um outro projeto de Igreja, centrada no Jesus histórico, aquele, tão esquecido e que andava com os excluídos, com os hansenianos, que acolhia e não enjeitava. Anos depois, durante a Covid-19, e em um momento de desesperança, estava ele, em uma caminhada solitária em direção à capela de orações, em meio a uma chuva fina, na Praça de São Pedro, rezando por todos nós, num Vaticano completamente vazio.
Durante todo o seu papado, ele foi um sopro de esperança em meio à tendência imanente do uso da fé e dos mandamentos de Cristo para deturpar seus ensinamentos e legados. De outro lado, assistíamos atônicos algumas autoridades religiosas, verdadeiros catalizadores políticos, subirem em palanques para defender a ditadura e a quebra da democracia, em que Deus serve quase exclusivamente aos nossos propósitos pessoais e de nossos familiares. Numa quadra da história em que uma nova onda religiosa corre o mundo ocidental – o cristianismo usado como instrumento de idolatria da prosperidade, pois fundamentada no empreendedorismo e no livre mercado, deixando de lado o Jesus dos Evangelhos – o Papa Francisco deixa em nossos corações a esperança. Um sinal de que Deus não nos abandonou.
Entretanto, até ele é vítima de ataques das mais variadas ordens e, curiosamente, por suas virtudes. Veja, caro leitor, caminhar ao lado dos pobres e admitir as diferenças, eis os principais defeitos a ele imputado! E aqui me ponho a refletir: Nós gostaríamos mesmo que Jesus Cristo voltasse? E se ele retornasse à Terra, como faríamos? Iriamos segui-lo?
Fiódor Dostoiévski, judaico-cristão, em 1880, num dos capítulos mais belos da literatura universal, “O Grande Inquisidor”, tratou desta ferida, na obra “Os irmãos Karamazov” (capítulo V do Livro V). Nele, Cristo retorna ao mundo, ocultamente, durante a inquisição Espanhola, em Sevilha, quando as fogueiras ardiam. Ao cruzar com o povo, ele passa “calado entre eles com o sorriso sereno da infinita compaixão”, derramando sobre as pessoas amor recíproco. Em seguida, ele cura um homem cego e realiza o milagre da ressureição em uma criança de sete anos, fato presenciado pelo cardeal Grande Inquisidor que o prende à vista da população calada, pois habituada à obediência. Ele acusa Jesus Cristo de prejudicar a humanidade, pois deu aos homens o livre arbítrio, a liberdade de escolha, ao invés de se impor como autoridade. E, ao mesmo tempo em que não há nada mais sedutor que a liberdade de consciência, também não existe nada mais angustiante:
- “Tu quiseste a liberdade, e o que foi que viste? O homem é mais fraco e mais vil do que Tu pensaste!”.
Levado ao interrogatório, o Grande Inquisidor indaga a Jesus: “És tu? Tu?”. Cristo, num gesto de resistência pacífica (desarmamentista), não responde. Então se inicia um monólogo, em que a autoridade religiosa o acusa de ter voltado para atrapalhá-los. Para aquele religioso, há apenas três forças na Terra capazes de conduzir os homens, o milagre, o mistério e a autoridade. Todos foram oferecidos e recusados por Cristo na tentação do deserto. Opostamente, eles foram aceitos pelos homens que, por outro lado, renunciaram à liberdade como um rebanho de gado. Dada a genialidade do monólogo, eis alguns trechos:
- “Estás vendo essas pedras neste deserto escalvado e escaldante? Transforma-as em pão e atrás de ti correrá como uma manada a humanidade agradecida e obediente, ainda que tremendo eternamente com medo de que retires tua mão e cesse a distribuição dos teus pães’;
- “A liberdade e o pão da terra em quantidade suficiente para toda e qualquer pessoa são inconcebíveis, pois eles nunca, nunca saberão dividi-los entre si! Também hão de persuadir-se de que nunca poderão ser livres porque são fracos, pervertidos, insignificantes e rebeldes. Tu lhes prometeste o pão dos céus, mas torno a repetir: poderá ele comparar-se com o pão da terra aos olhos da tribo humana, eternamente impura e eternamente ingrata?”;
- “Ficarão maravilhados conosco e nos considerarão deus porque, ao nos colocarmos à frente deles, aceitamos suportar a liberdade e dominá-los – tão terrível será para eles estarem livres ao cabo de tudo! Mas diremos que te obedecemos e em Teu nome exercemos o domínio. Nós os enganaremos mais uma vez, pois não deixaremos que tu venhas a nós. É nesse embuste que consistirá nosso sofrimento, porquanto deveremos mentir”;
Ao final do monólogo, Jesus, que a tudo ouvia silenciosamente, apenas se aproxima e beija o velho inquisidor nos lábios. Ele, perturbado, o liberta, mas diz: “Vai-te, e não voltes mais... nunca mais”. Cristo sai em silêncio, numa representação da vitória do amor sobre o poder. Tudo bem ao estilo do Papa Francisco. É por isso, caro leitor, que desejo a todos nós que a Igreja continue francisco...
Ops. Acaso o leitor não seja dado à leitura, há um
Ops2. Por esses dias, comemorou-se o dia do trabalhador. Um tal Vinícius de Moraes andou fazendo uns poemas estranhos:
Ele era apenas um operário que desconhecia de tudo/Mesmo sabendo construir ele era alguém sem futuro/Esse mesmo alguém ainda não sabia de sua grande missão/Precisa trabalhar/Um novo templo criar/Um templo sem religião
De fato, como podia/Esse operário em construção/Entretanto, por que um tijolo valia mais que um pão? /Dessa forma ao operário seguia/Com o seu movimento/Em erguendo uma casa aqui/Logo adiante um apartamento/Logo ali mais pra frente tinha um quartel, prisão/De quem sofria/Eventualmente um operário em construção.
Que o nosso feriado tenha sido bom !