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Nutricionismo: “o rei está nu”

Ao fim e ao cabo, todo o reino passou a admirar a roupa invisível, inexistente

Quadro do pintor Floris Claesz van Dijck, “Ainda vida com queijo” (1615)

Caro leitor,

Lembra-se da minha promessa quando do nosso último encontro? Pois então.

Por fortuna, li por recomendação médica o livro de Sophie Deram, “Pare de Engolir Mitos”, sobre o modismo na nutrição. Ao final, dei-me conta do meu estado de ausência de paz com a comida e de como fui dominado pelo terrorismo nutricional, a ponto de cegar-me, tal qual a lenda de Hans Christian Andersen (1805-1875), A nova roupa do imperador.

Diz a história que um rei gostava tanto de roupas novas que passava boa parte do dia a vesti-las, ao invés de cuidar do reino. Num determinado dia, dois viajantes apareceram por lá dizendo que produziam roupas tão deslumbrantes que só pessoas especiais poderiam vê-las. E mais, convenceram o monarca de que pessoas desprovidas de inteligência diriam que elas sequer existiam. Assim, o imperador determinou a seu auxiliar que observasse como os dois teciam os panos. O súdito, mesmo vendo os teares vazios, por medo e insegurança, disse ao imperador: “É maravilhoso! Que padrões! Que cores!”. A mesma reação tiveram outros súditos e até o próprio rei: “O imperador diante do espelho admirava a roupa que não via”.

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Ao fim e ao cabo, todo o reino passou a admirar a roupa invisível, inexistente. Até que um dia, uma criança, com toda a sua pureza, ao ver o desfile do Imperador, gritou em meio à multidão: “Ele está sem roupa! O rei está nu”. E, assim, abriu os olhos daquela sociedade em que a palavra substituíra a realidade, e um discurso fora capaz de tomar ares de verdade absoluta, inquestionável e na qual as pessoas se habituaram com a coisa posta. Como disse Affonso Romano de Sant`Anna: “Essa é uma lenda sobre um pacto de não ver, onde toda uma comunidade brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada. E porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos deixam de ver (e ter opinião). É um caso de cegueira social.”

Essa histeria coletiva narrada na lenda - cuja expressão é utilizada até hoje, em que somos cegados por ideias postas, absorvidas em nosso inconsciente coletivo, às vezes muito mais fortes do que pensamos, a ponto de não conseguirmos ver o óbvio, muito comum na política, no futebol e na religião - também se aplica a assuntos do cotidiano. Foi preciso que o livro escrito por Sophie Deram gritasse “o rei está nu” aos ouvidos deste aprendiz para que eu me desse conta do que fizemos com a alimentação.

Nas duas últimas décadas, de repente, não mais que de repente, fomos atulhados por informações nutricionais: “coma de três em três horas”, “corte o glúten e a lactose”, “faça jejum intermitente”, “beba três litros de água por dia”, “não beba leite”, “corte o pão de sal”, “não coma manteiga”, “coma ovo, não coma ovo”, e uma série de imposições as quais, ainda que em alguns casos façam sentido, transformaram-se numa regra, mais forte que uma sentença, pois daquela não cabe recurso. Em meio a esse emaranhado de novidades e boicote a alimentos que fazem parte do cotidiano do ser humano há milhares de anos, passamos a viver um terrorismo nutricional, em que “tudo o que consumimos passou a ser potencialmente danoso”.

Aos poucos, fomos perdendo nossa relação com o alimento bem como o prazer de comer em prol de um pseudo cientificismo, numa tentativa de controle permanente de calorias e, consequentemente, do nosso corpo. A balança, inventada no antigo Egito, hoje é usada para pesar a quantidade de nutrientes que serão ingeridos. Exames, sequer feitos no Brasil, são repetidos mensalmente. Usamos relógios para nos dizer diariamente se dormimos bem, em substituição à disposição que sentimos ao acordar. Mede-se de tudo. Os machos alphas, seres que merecem um estudo antropológico bem detalhado, sempre pitorescos nos hábitos, acham-se capazes de medir o desempenho sexual pelos índices de testosterona (que fase...). Enfim, quantificamos a saúde. E o alimento ingerido também.

Em meio a tudo isso é que a escritora, alguém de dentro da nutrição e da ciência (diferente da criança do conto, por se tratar esta de alguém de fora da monarquia), desmistifica todo esse cenário criado pelos influenciadores das redes sociais e pela indústria alimentícia. Ela diz o óbvio, mas que muitos não conseguem enxergar, a exemplo deste aprendiz, por tanto tempo preso aos índices nutricionais e a uma mentalidade de dieta restritiva. Ao questionar sobre a visão dos alimentos como uma ciência exata e também dos padrões absolutos do que é saudável, ela diz: “Quando se acredita que ser saudável é cortar açúcar, glúten e lactose, comer só alimentos orgânicos, contando calorias ou se privando de tudo o que é gostoso, a comida se torna uma inimiga, quando na verdade é uma aliada”; “pensar apenas nas calorias faz a pessoa perder a noção de qualidade nutricional e virar uma “calculadora de números, desligando-se dessa parte tão importante do comer que é a vontade e o ato de saborear”; “comer bem é mais simples do que parece”; “comer não pode virar um estresse; é uma das melhores coisas da vida e a base da sua saúde”. E por aí vai, dentro de certa obviedade, pela qual passamos desapercebidos, tamanha a febre da nutrição, além de muitas informações técnicas, pois vindo do metro criterioso da pesquisa e ciência e não dos gurus das redes sociais com seus corpos sarados.

No fim das contas, toda essa neura traz mais malefícios que benefícios à saúde, esse direito fundamental, previsto no art.5º da Constituição Federal, muitas vezes visto como associado à doença, quando na verdade diz respeito ao bem-estar geral, o que inclui o prazer na alimentação, no ato de celebração do alimento, hoje muitas vezes visto como instrumento de culpa, medo e autopunição. Há de se ir devagar com o andor no trato desses padrões nutricionais, até porque, convenhamos, o que hoje é considerado benéfico, amanhã pode não ser. Lembremo-nos da cocaína, ingrediente comum nos remédios do início do século XX, sendo até considerada um produto revigorante e um analgésico poderoso...

É óbvio que devemos sim evitar determinados tipos de alimentos e excessos, mas não da forma como tem se divulgado pelas mídias sociais, em que quase todos os alimentos são demonizados. Com perdão do clichê, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Acaso o leitor seja muito dado a encontros glutões, há que se ter cautela, assim como cuidado para as situações individuais, mas o que a cientista nos diz é para evitar os extremos, as conclusões generalizantes que desconsideram a individualidade, os excessos de preocupações e até de informações. Sim, informações, as quais podem acabar por desinformar, como na propaganda, de Washington Olivetto, em 1987, em que um pequeno ponto preto aparecia na tela da TV, formando o rosto de Hitler em segundos. Em seguida, uma voz falava de seus feitos: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho a seu povo...”. Em seguida, o comercial concluía: "É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso é preciso tomar muito cuidado com a informação no jornal que você recebe.”.

Portanto, caro leitor, bora escutar o tilintar dos copos e talheres, partilhando com os nossos deste momento sublime que é o manjar, para que no futuro não haja razões de queixa pelo não vivido, digo, não saboreado. Tudo com moderação, é certo; mas com prazer também.

Ops1. A tinta da coluna de hoje é mais uma mostra, a este hipocondríaco involuntário, de que quando lemos um livro, não sabemos de antemão o que ele poderá nos revelar. Veja o benefício: voltei com o pãozinho de sal quente com manteiga, a dourar a alma, como um dividendo pelos sacrifícios da labuta. Ufa!

Ops2. O quadro que abre esta coluna é do pintor Floris Claesz van Dijck, “Ainda vida com queijo” (1615). Por que não ceder a esse desejo natural, ao invés de apenas contemplar o espetáculo?

Ops3. Para quem quer conhecer ou se lembras da peça publicitária de Olivetto, clique neste link

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.