Assisti essa semana a uma entrevista do Gilberto Gil sobre a sua turnê de despedida, à qual anseio fortemente por assistir. Afinal, Gil é Gil! Chamou-me a atenção sua postura diante da finitude da vida, tema que me é tão difícil (haja terapia...):
-“Tento evitar um emocionalismo dominante que vá me embargar a voz na hora de cantar, atrapalhar o desempenho, a performance. Mas tem uma emoção. Tem a ver também com essa condição de admitir e adotar a finitude como um elemento integrante da vida. A morte faz parte da vida nesse sentido. Aliás, esse é um verso de uma das minhas canções. Nesse sentido, é preciso respeitar o fim. Ter respeito pelo fim das coisas”.
A ideia de Gil veio aguar-me o gosto para um assunto antigo e que trabalhei há mais de uma década, ainda no mestrado: o desejo do homem de prolongar a vida a qualquer custo e a nossa resistência diante de sua finitude. Foi aí que me lembrei de dois contos, um de Machado de Assis e outro de Jorge Luís Borges.
O Velho Bruxo do Cosme Velho publicou, no periódico “A Estação”, em 1882, o conto “O imortal”. Nele, um médico homeopata relata a vida de seu pai, um homem nascido em 1600 que, jovem, recebe de um “chefe indígena”, uma poção amarela capaz de “abrir uma exceção na lei da morte”:
- Os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse; qual era no tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, perpetuamente moço.
Entretanto, com o passar dos séculos, o homem foi tomado por uma profunda melancolia, “nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor”. “Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado”. Todas as experiências lhe traziam os mesmos sentimentos e paixões. Indagado pelo filho do porquê de tamanha tristeza, ele, que “daria a alma ao diabo para ter a vida eterna”, sorriu-lhe com expressão de superioridade e respondeu que a vida eterna afigurava-se excelente, justamente porque “era limitada e curta”. Assim, ele decide por fim ao elixir da eternidade, tomando a outra metade do princípio homeopático que fora para ele a salvação: bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, expirou.
Em 1949, foi a vez de Jorge Luís Borges enfrentar o tema com um conto de mesmo nome. Nele, um guerreiro romano, Marco Flamínio Rufo, ao tomar conhecimento da existência da Cidade dos Imortais e de um rio que conferia imortalidade àqueles que tocassem suas águas, parte à procura do elixir da longa vida. No trajeto, ele se depara com inúmeras dificuldades, as quais são superadas com muito sacrifício até que, finalmente, ele os encontra – a cidade e o rio - e recebe o dom da imortalidade. Todavia, com o tempo, essa condição de imortal revela-se monótona e desinteressante, “sem princípio visível”, o que faz com que ele parta em direção oposta, ou seja, em busca de sua condição anterior, de mortal. Ao final, conclui:
“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível. O incompreensível é saber-se imortal”
O que ambos os textos nos dizem, dentre muitas coisitas mais, é que, no plano terreno (até porque este aprendiz, cristão que é, acredita na vida eterna), é a morte que dá sentido à vida. E mais do que isto, a consciência de seu término como possibilidade iminente é que nos impulsiona para enfrentar os desafios postos, nos conduz ao prazer de “mais um dia”, tornam preciosos os nossos momentos, dá sentido aos nossos sonhos.
Saber que cada ato pode ser o último (Pensamento/ Mesmo o fundamento singular do ser humano/ De um momento para o outro/ Poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos) e que tudo agora mesmo pode estar por um segundo, faz com que valorizemos os instantes com vigor, sabendo-os irrecuperáveis, trazendo urgência ao ato de viver e permitindo-nos a celebração de cada momento de alegria. É esse o legal da nossa existência! Logo, as tentativas de imortalidade para o homem, para além de revelarem-se inúteis, acabam por negar a vida.
Dito isso, perceba o leitor como as redes sociais estão repletas de promessas mirabolantes de cápsulas e mais cápsulas capazes de nos conduzir à imortalidade. Para tudo há sempre uma solução simplista, baseada em produtos mágicos. E, assim, tentamos negar a força do tempo e de nossa transitoriedade, nos enganando. A grande verdade é que essa busca pelo elixir tornou-se um grande negócio, cheio de modismo.
Há também um outro problema até mais grave: os casos de prolongamento artificial da vida, a chamada distanásia, ou seja, a luta para assegurar a sobrevivência de pacientes em estado terminal, independentemente das circunstâncias, levando-os ao prolongamento exagerado da agonia e do sofrimento. Ora, no Direito, não há nenhuma imputação cível ou criminal ao médico que suspende terapias artificiais cruéis, precárias, penosas, dispendiosas e inúteis. Afinal de contas, a função do médico não é garantir a imortalidade e sim a qualidade de vida. Vejam os casos em que os pacientes permanecem submetidos à ventilação mecânica depois da morte cerebral total, em que pese a ausência de possibilidades de melhora. Quando o coma se apresenta como “irreversível”, casos em que todas as funções cerebrais do paciente estão completa e irreversivelmente danificadas, segundo pareceres de especialistas, permanece a obrigação apenas dos cuidados ordinários, como a hidratação e a nutrição parenteral. Nesta hipótese, não se exige a prática de meios debilitantes e custosos para o paciente, sob pena de condená-lo à prolongação de uma agonia, sem possibilidade de recuperação da consciência e da capacidade racional.
Por hoje é isso, caro leitor. Bora aproveitar a finitude da vida, conscientes dela e de sua necessidade, e o correr dos anos com Mário de Andrade: Diante da vida, eu jamais tenho o prazer do espetáculo. Eu vivo. Isso de morrer não tem importância, o importante é viver um pouco agitando e encantando a vida. Pra mim, viver é gastar a vida. Ou então com o convite de Charles Baudelaire: Para não serdes os eternos martirizados escravos do tempo, embriagai-vos, embriagai-vos sem cessar, de vinho, poesia, virtude, amor, como achardes melhor.
Ops. Em breve voltarei a este tema para falar do nutricionismo, ou seja, o foco exclusivamente científico na alimentação. É que estou lendo um excelente livro da Prof. Sophie Deram que me fez repensar muita coisa. Atrever-me-ei a algumas confissões e reflexões...
Ops.2. Até lá, desejo a você, caro leitor, muito Gilberto Gil: Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei/ Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei.