Há coisas que a gente repete sem saber. Um dos refrões contemporâneos, circulando na boca do povo, mais que caroço em boca banguela é: a democracia está em crise. Seja mais à esquerda, indicando que foi tentativa de golpe, seja à direita, acusando Maduro, paira um clima de insegurança sobre para onde estamos caminhando a nível de sociedade. Parece que as Redes Sociais, em sua promessa de integração e esclarecimento, desidrataram a nossa esperança de “tempos modernos” mais tranquilos, livres e lúcidos.
Bom. Num primeiro momento parece até ironia o texto de um padre falar sobre democracia. A empresa em que os padres “trabalham” é a única monarquia absoluta não hereditário da Europa. Concentra-se nos papas a função de legislar, executar e julgar de modo supremo e como última instância, em nome de Deus. Todavia, num olhar mais atento, a permissão de falar sobre esse assunto é pertinente e concedida, já que, se historicamente o papado é lugar de hierarquia, a Igreja em sua essência foi desejada por Cristo como comunidade fraterna e colegial.
Em resumo, não obstante a Igreja Católica seja, do ponto de vista de sua estrutura essencialmente hierárquica, ela é principalmente um mistério de comunhão e comunicação. Em termos muito práticos, os católicos têm cláusulas pétreas e princípios inegociáveis, que mesmo num exercício nem sempre democrático (já que nem tudo se decidirá por voto), os cristãos genuinamente devem defender a liberdade, a verdade e, sobretudo, a caridade. Isso porque, é princípio cristão que não se pode ser autoritário, mesmo sobre o que não se cabe discutir, pois, “o amor verdadeiro não é mentiroso. A verdade sem o amor é uma mentira" (Bento XVI). A Igreja que hoje teme não ser relativista não pode esquecer suas manchas na Inquisição!
Demos essa volta toda, com ironia e bom senso histórico, para indicar que, em tempos de crises e de acusações mútuas, não podemos retroceder em nosso pacto civilizado de uma verdade que não nos impeça de criarmos diálogo e consenso. Às portas mais uma vez de uma memória trágica na história do país que foi a ditadura militar, não podemos retroceder na defesa da democracia! Sob nenhum pretexto.
Em termos práticos a democracia para nossa Constituição Brasileira, para nossa civilização contemporânea e ocidental, é princípio continente de que tudo mais é conteúdo, é a base de nossa civilidade. Ou seja, todas as nossas instituições, do exército ao STF, existem para garantir a existência do Sistema democrático sem o qual tudo o que nos une e protege desmorona num segundo.
Ninguém tem dúvidas de que, sim, a atuação das grandes Big Techs (Facebook, X, Instragram, Meta, wpp etc) não é neutra e isso está impondo reflexões profundas sobre o modo com o qual temos consumido conteúdo, interagido entre nós, discernido sobre o que é ou não verdade, lidado com as instituições.
Se há um risco de relativizar tentativas de golpe, que são sempre nefastos, já que, depois que o autoritarismo se instaura, há salvo conduto para todo tipo de loucura, é preciso também descer do pedestal e ir atrás dos sentimentos profundos catalisados hoje por líderes centralizadores, autoritários e populistas.
Aos cristãos, cabe-nos uma intensa vigilância, não só acerca das cortes judiciais, mas sobre nós mesmos. Somos portadores de grandes ideias, - “iluministas”, diríamos - e não obstante o cristianismo seja mais do que uma doutrina ou um ideologia, podemos confundir o compromisso com a verdade com a imposição dar uma cristandade.
"É para liberdade que Cristo nos libertou”! Gl 5,1, diz o Apóstolo. A busca pela liberdade não pode se tornar, nem entre cristãos progressistas, nem conservadores um cálice de ódio e um salvo conduto para ressentimentos.
Em tempos de crise, um pouco da democracia representativa tal como a conhecemos até aqui, um pouco da sanidade a respeito do que realmente importa, em tempos de vaivém de decisões jurídicas - “em que o preço do crime compra juízes” Shakespeare - seja-nos dada a lucidez da democracia, da verdade que se ausenta lá onde há autoritarismo e violência, de uma fé que não é política, mas que dela se furta .
Deus livre nossos púlpito de política! “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César" (Mt 22, 21). Deus nos livre do sangue derramado em Estados totalitários. Deus nos livre de poderes que tendem para ondem mandam os conchavos e os afetos. Deus nos livre de uma fé que não provoque a política que é “uma coisa séria demais para ser deixada aos políticos” (Charles de Gaulle).