O leitor há de concordar com este aprendiz que é muito difícil chegar à última coluna do ano sem voltar os olhos para o que se passou em 2024, numa revisão dos sucessos e fracassos. Sei que Drummond fez uma bela crônica dizendo que nesta época “não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta”, nem “chorar arrependido pelas besteiras consumidas”. Nisso, concordo, até para evitar confissões doídas e desgostos, além de certa nostalgia, como na canção de Osvaldo Montenegro, aquela que diz para você fazer uma lista dos grandes amigos, dos sonhos que tinha, dos amores jurados pra sempre e tantos outros detalhes que já ficaram no passado. Portanto, resistirei à tentação. E nisto não estou só, Paulo Mendes Campos, tantas vezes citado e reproduzido neste espaço, fez o mesmo em 1957: “Então para que sofrer, duas vezes, na carne e na lembrança? Francamente, não entendo o prazer masoquista que se tem em lamber feridas, chorar mágoas, esmiuçar pobreza.”
Tudo bem que o ano prestes a terminar não foi assim tão ruim, em alguns momentos, ao contrário, tivemos gratas surpresas, como o filme “Ainda estou aqui”, as meninas da ginástica olímpica e outros tantos episódios, mas é que prefiro ficar com as projeções para o ano vindouro, mais especificamente com a lista de desejos, o meu chinelinho atrás da porta. E, nisso, não vejo mal algum. Afinal, há de se planejar e aproveitar a ilusão de que o limiar de um novo ano marca o início de um novo tempo. Claro, tudo com otimismo e calcado na literatura que é a nossa proposta desde a primeira coluna. Ei-la:
Campo Social:
- Que a nossa preocupação com o preço do dólar seja no mínimo idêntica à do índice de pobreza no Brasil. Segundo dados do IBGE, 9,5 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza no país, o que equivale a 4,4% da população. São números tristes e preocupantes. Entretanto, a variação deste número não tem merecido o mesmo acompanhamento que a oscilação do dólar, sobretudo no seio da nossa classe média que, agora, se desespera com a moeda americana custando uma fortuna. Em 1947, época de forte crescimento econômico, Manuel Bandeira, para dizer o indizível, chamou-nos a atenção para a temática social, ao escrever o poema “O Bicho”:
Que admitamos os horrores da ditadura no Brasil, sem relativismos baratos, sem homenagens a torturadores. Aliás, chega em 2025 a inauguração do memorial da ditadura, em Petrópolis, na chamada “Casa da Morte”, centro de tortura e assassinato no regime militar: “Para que nunca mais se repita”. Lembro ao leitor que se interessa pela literatura que só nos 10 anos do AI-5, cerca de 200 livros foram censurados, sendo o primeiro deles de Nelson Rodrigues, em 1966, “O casamento”, sob a alegação de ataque à sagrada instituição da família. Daí que devemos nos poupar de qualquer homenagem a torturadores e afins. Que tempos bicudos para termos que desejar o óbvio... Socorro, Papai Noel!
- Que possamos nos levantar sempre contra o racismo em suas mais variadas formas. É hora de abandonarmos definitivamente a ideia de que todos têm as mesmas possibilidades, independentemente da raça ou cor. E aqui, fico com Mia Couto, em “O Mapeador de ausências”: “Há pessoas que garantem que não veem raças, que só veem pessoas. Eis uma coisa bonita de se dizer. Mas neste mundo de hoje, ser cego para as raças, pode ser uma maneira de não ver o racismo”.
Campo jurídico:
- Que poupemos o ouvido e os olhos do próximo, falando e escrevendo somente o necessário. É preciso diminuir o tamanho das peças jurídicas que, muitas vezes, de tão grande, não dizem nada. Impressionante como nós, do direito, somos prolixos. Espero voltar nisso em 2025, mas desde já me antecipo com Jorge Luís Borges que, ao ironizar o rigor da ciência, propõe, em um único parágrafo (!), a perfeição da cartografia. Nela, “o mapa de uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto.”
- Que ouçamos mais e falemos menos. Esse nosso desejo inconsciente de sermos ouvidos sempre é um problema. Basta ver um microfone e uma plateia de dois, que já estamos nós a falar sem parar... Quem sabe em 2025 não possamos ouvir também? De repente após aulas de escutatória. Ou quem sabe após a leitura do curto conto de Rubem Alves, em que ele constata que “todo mundo quer aprender a falar”, mas “ninguém quer aprender aouvir”. Daí ele conclui a nossa dificuldade: “a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer… Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…”. A sugestão dele é que aprendamos com os pianistas que, antes de começar um concerto, ficam em silêncio diante do piano, “abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as ideias estranhas”. Ao fim, conclui que “a música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.”
- Que sejamos eternamente inconformados, sobretudo com as injustiças sociais. O mundo jurídico é um meio à parte, onde muitas vezes nos encastelamos nos prédios, nas solenidades, no interior do paletó e, sem perceber, damos as costas à realidade social. Nossa vaidade é uma constante que precisa ser freada dia a dia, num exercício diário. Bertold Brecht, no poema “soube que vocês nada querem aprender”, nos fala dos tempos incertos, em que “onde há tantos a seu favor/ Você não precisa levantar um dedo./ Sem dúvida, porém, se fosse diferente/ Você teria o que aprender.”. Portanto, que os salamaleques do mundo jurídico, cercado por todo o seu poder, não nos afaste da nossa real missão.
Em 2025 pretendo carregar nas tintas alguns destes desejos e tantos outros que gostaria de compartilhar com você, caro leitor, que me aturou neste ano, seja por amizade, generosidade, curiosidade ou até maldizer.
Ops. 1: O quadro que ilustra este artigo,
Ops. 2: Este ano
Aproveito para agradecer a todos que me deram “régua e compasso” para que eu pudesse partilhar neste espaço algumas ideias. Alguns já não estão entre nós, como os meus pais, outros seguem me ensinando, como as Professoras Alzira Teresa e Else Martins.
Bons livros!