Em uma noite há 25 anos, um acidente de trânsito em Belo Horizonte deixou nove mortos e uma memória que outros 52 feridos jamais esqueceriam. Um ônibus da linha 1505, que faz o trajeto entre os bairros Alto dos Pinheiros e Tupi, caiu dentro do Rio Arrudas na noite do dia 16 de julho de 1999.
Na época, a investigação da polícia concluiu que o motorista furou o sinal vermelho na descida da Rua Tupinambás, no cruzamento com a Avenida dos Andradas, e bateu em dois carros, um Tempra e um Gol, e em uma moto. O veículo perdeu o controle e acabou caindo, com as rodas viradas para cima, na águas sujas do Arrudas.
Maria Nilza Loyola, de 64 anos, estava lá, sobreviveu ao acidente, e conta o que lembra.
“Eu lembro que a gente estava descendo a Tupinambás. Quando o ônibus foi atravessar a avenida dos Andradas, ele bateu. Para mim não era nada até então, só que veio a surpresa: o ônibus caiu dentro do rio com os pneus para cima. Aí começou um salve-se quem puder. A água ficou represada e ficou mais alta. Ela foi entrando no ônibus e tempo de afogar as pessoas. Eu sei que eu consegui sair”, conta.
A ajuda a quem não conseguia sair do ônibus
A idosa relembra que foi uma das pessoas que ajudou os demais passageiros a saírem de dentro do ônibus.
“Quando eu consegui sair, eles [pessoas que estavam na parte de cima do canal do Arrudas] começaram a gritar: ‘acode’, ‘acode’. Aí que a gente foi acudir quem estava morrendo afogado. As pessoas que machucaram não conseguiam sair da água. Teve uma senhora que a gente ficou de 10 a 15 minutos tentando tirar ela da água. Ela quebrou o braço e a perna e não conseguia sair sozinha, mas conseguimos tirar ela de lá. Quando eu saí sozinha, para mim eu estava morta. Eu ficava passando a mão no meu rosto várias vezes até as pessoas começarem a gritar para quem estivesse melhor, no caso eu estava em pé, para ajudar quem não conseguia sair. Quem estava dentro do rio estava tão em choque que não conseguia pensar nada, só obedecer”, afirma.
Maria Nilza acredita que cada um tem a sua hora pra partir desse mundo. Isso porque ela também é personagem de outra história trágica em Belo Horizonte: ela estava dentro de um ônibus suplementar da linha 70 quando o viaduto dos Guararapes, na Avenida Pedro 1, caiu, em 2014, deixando 2 mortos e 23 feridos.
Idosa é prima de guarda que sofreu acidente no rio Arrudas neste mês
E por mais uma coincidência da vida, Maria Nilza é prima da guarda municipal que estava pilotando a moto onde uma outra guarda, Stephanie Regina Santos Quintão, de 28 anos, estava na garupa. A moto das mulheres se chocou contra a mureta da avenida dos Andradas, na última semana. Stephanie caiu no rio Arrudas, foi resgatada, mas não resistiu.
Questionada sobre o que sente em relação ao acidente há 25 anos, Maria Nilza fala sobre a tristeza em ver acidentes como o seu se repetirem na região.
“Eu sinto tristeza porque as coisas acontecem ainda lá. Minha prima sofreu um acidente de moto na semana passada. A garupeira dela morreu depois de cair dentro do Arrudas de novo. Ela está no hospital, já fez não sei quantas cirurgias e continua fazendo cirurgias. Ela chama Alden, e está no Hospital João XXIII. A colega dela morreu na hora e a Alden está assim... só Jesus. A mãe dela está aos prantos. Então, eu dou graças a Deus que eu estou aqui, mas isso não quer dizer que eu estou feliz, que eu não sofra muito com as perdas”, conta.
A idosa ainda conta que precisa enfrentar o medo de andar de ônibus próximo ao rio Arrudas todos os dias. “Não vou dizer que eu venho tranquila, eu venho da minha casa até o centro dirigindo junto com o motorista. Eu tenho muito medo, fico achando que pode acontecer [um acidente] a qualquer minuto”, desabafa.
Bombeiros já registram mais de 50 ocorrências no Arrudas em 2024
A Itatiaia solicitou um levantamento para o Corpo de Bombeiros sobre o número de acidentes registrados entre 2022 e 2024. Segundo a corporação, foram registradas 132 ocorrências no rio Arrudas em Belo Horizonte em 2022. No ano seguinte, em 2023, foram 89. Neste ano, os bombeiros já atenderam 53 ocorrências no local entre 1° de janeiro e 11 de julho de 2024.
Após a morte de Stephanie, uma jovem que também caiu no Arrudas após um acidente de trânsito cobrou o poder público sobre o aumento das muretas na avenida dos Andradas. A assistente administrativo Marcely Diniz, de 27 anos, estava na garupa de uma moto que bateu na mureta do Rio Arrudas, em dezembro do ano passado. Com o impacto, Marcely foi arremessada para dentro do canal. Ela foi resgatada, mas acabou precisando amputar a perna devido ao acidente.
“Na hora que eu vi a reportagem [sobre Stephanie] eu lembrei do meu acidente. Chorei o dia inteiro. Lembrei do quão doloroso foi para a minha família. Eu perdi a perna, mas essa moça perdeu a vida. Isso mexeu muito comigo porque poderia ter sido eu”, afirma à Itatiaia.
Ao compartilhar a sua própria história nas redes sociais, Marcely recebeu uma enxurrada de mensagens de familiares de vítimas que já caíram dentro do rio.
“Muitas vezes as pessoas acham que acidente de moto é sobre quem está bêbado, drogado, mas não é. Acontece com trabalhador também, como é o caso dessa guarda municipal. O foco deveria ser em arrumarem essa barra de proteção, aumentarem ela, ou instalarem uma tela ali para evitar que as pessoas caiam. Não é a primeira vez que isso acontece. Quando eu falo sobre a minha história, muita gente me conta um caso de alguém que também caiu, e você descobre que é comum”, conta.