No princípio era o lugar. O início de tudo que existe sempre guarda relação com um território. O surgimento de uma pátria, de uma família, de uma crença, de quem somos se situa sempre num lugar que é: espaço e tempo. É partir de um “lugar”, ainda que a gente não perceba, que brota a nossa “medida” sobre o mundo...
Pensemos, no caso do Nordeste: como entender as voltas que a sanfona dá ou poesia de um Luís Gonzaga descoladas da resistência do povo nordestino? Ou mesmo, o senso de humor aguçado do Nordeste. Já reparou a quantidade de humoristas que surgem de lá? O sertanejo, como ninguém, sabe fazer das dores da vida assunto de riso e de beleza.
Penso em Cássia Eller, Tom Jobim... O seu jeito malemolente e despachado é reflexo, na alma, das ondas do mar. Pensemos no povo mineiro, o das Minas e o dos Gerais. Repare se quem nasce aqui não fala cantado, se todo mundo não é parente e se a nossa personalidade não é um “queijo com goiabada”, sendo ao mesmo tempo gentil e reçabiada. Veja se isso não tem a ver com o fato de as paisagens de Minas serem feitas de curvas, de vales e da montanhas...No litoral, a beleza não tem pudor: é linda e cheia de graça. Em Minas, o encanto é a pausa e o arroubo é atrás da montanha, no fundinho do quintal de casa.
No princípio era o lugar. E tudo o que dele decorre, como personalidade, escolhas, angústias ou sonhos terá sempre ele como ponto de partida. Ao longo da vida vamos revisitando o território de nossas primeiras experiências. Isso, seja como repetição ou como repulsa. Ao fim e ao cabo, todos tivemos nosso Éden. Esse, para alguns, mais Paraíso, para outros, mais expulsão.
Para quem suspira pelo retorno, vale sempre a pena o alerta: nós não somos os mesmos, nem os lugares também. Panta Rei (tudo passa), como dizia Heráclito. Um pouco de nostalgia aquece a alma, já que, como lembra nossa poetisa Rita Lee: “tem pessoas que a gente não esquece, nem se esquecer”. Todavia é uma grande ilusão tentar voltar a lugares, buscando reviver as mesmas coisas. A frustração será imensa. O tempo é ingrato: lançará nossas expectativas sobre o paraíso perdido na frustração e no vácuo.
Para quem se dói do exílio do Jardim, o risco é o ressentimento. Pessoas assim vivem como se a vida fosse uma dívida. Gente assim sempre sente que tem contas a prestar. Se sufoca nos estudos para se descolar da imagem de “caipira”, faz do shape uma desagravo à adolescente muito magrinha, cujo fantasma ainda reside na alma, quer o melhor carro para desfilar “naquela cidade”, aquela a que o inconsciente precisa impressionar.
Às portas de mais um Natal, mais um Fim de Ano as retrospectivas são inevitáveis. O desafio será não querer “voltar” aos mesmos pontos, lugares...
Fomos todos expulsos do Paraíso. E não adianta tentar voltar. Há anjos impedindo sua porta (Gn 1,24). Humanos, demasiadamente humanos, estamos condenados ao exílio, a desertos (em marcha como o povo de Israel). Quem olhar para trás vira estátua de sal (Gn 19,26).
A ceia está próxima, os amigos fictícios, digo... ocultos, também. As piadas serão as mesmas. A substância da moral pública continua sendo a hipocrisia (Pondé). Então, não sejamos um prato de sal na confraternização da empresa, nem comendo o peru de Natal.
Quem olha demais para trás não ressignifica “o lugar”. Quem tem contas demais a prestar ao passado ficará afogado nas másgoas “do que se foi” e se tornará uma estátua e um prato de sal insuportável.
No princípio era o lugar. Estamos todos ligados ao lugar. Ninguém consegue ver ou pensar senão a partir de um lugar. Em última instância, nunca existiu um lugar. Foi sempre sobre nós, nosso ponto de vista, nossa percepção. Nunca nos coube. Sempre foi um “não-lugar”...