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‘Eu não vou ter essa criança': da gravidez indesejada à descoberta da entrega voluntária

Leia a primeira reportagem da série especial ‘Entrega voluntária: um ato de amor’

“Quando descobri que estava grávida foi um impacto muito grande porque eu tomava anticoncepcional, injeção há 8 anos, então não estava contando com isso. Então o primeiro momento foi um desespero e eu sempre falei: eu não vou ter essa criança”.

O depoimento é de uma mulher de 39 anos que está grávida de 7 meses. Ela não quer criar o bebê e decidiu entregá-lo para adoção após o parto. A gestante, que aceitou falar sob a condição de não ter o nome revelado, será identificada durante a reportagem com o nome fictício de Virgínia.

Entrega voluntária

O processo conhecido como entrega voluntária está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, lei criada em julho de 1990 e prevê que a mulher possa entregar o recém-nascido para adoção caso não queira exercer a maternidade. Mas o processo só foi regulamentado em 2017, ou seja, 27 anos depois da criação do ECA. Apenas, em 2023, as regras ficaram mais claras com a divulgação de uma cartilha pelo Conselho Nacional de Justiça.

Com a regulamentação da Entrega Voluntária foram incluídos dois detalhes importantes: o direito ao sigilo e a entrega sem constrangimento para mulher. “A mulher não pode ser exposta e nem ficar sujeita a alguma forma de violência. Ela precisa ser acompanhada por uma equipe da Vara a Infância e da Juventude para tomar uma decisão madura”, como explica a diretora do Conselho Nacional de Justiça e do Sistema Nacional de Adoção, Isabely Mota.

Cada estado adotou um nome diferente para a Entrega Voluntária. Em Minas Gerais o projeto é conhecido como Entrega Legal.

O sigilo previsto na lei é apontado como fundamental para o sucesso da Entrega Voluntária pelo juiz da Vara Cível da Infância e da Juventude da Comarca de Belo Horizonte, José Honório de Rezende.

“É o sigilo que dá segurança à gestante de que a decisão dela vai ser de conhecimento apenas do poder judiciário. Muitas vezes, a gestante não quer comunicar a ninguém as circunstâncias da gravidez. O importante é salvar a vida do bebê e da mãe”, defende o juiz.

Gravidez indesejada

Vírgínia conta que não sabia da possiblidade legal de entregar o filho para adoção e que a primeira coisa que passou pela cabeça dela ao descobrir a gravidez indesejada foi procurar uma clínica para que o aborto fosse provocado. “Eu estava com medo de fazer o aborto porque a gente sabe que tem risco, mas estava desesperada”, desabafa Vírginia.

A gestante conta que, mesmo sabendo dos riscos, seguiu adiante com o plano de interromper a gravidez. Mas, ao chegar aonde acreditava ser uma clínica de aborto, descobriu que estava em uma casa de apoio para gestantes em situação vulnerável.

“Na casa de apoio eu descobri que poderia gerar a criança, fazer o pré-natal e depois fazer a entrega para adoção”, conta.

Era a informação que faltava para ela começar a se cuidar adequadamente. “Eu faço o pré-natal certinho, tomo vitaminas, faço ultrassons. Eu cuido de mim e do bebê”, conta a gestante.

A decisão de Virgínia foi tomada em comum acordo com o noivo, com 39 anos e sem filhos. “Você cria uma criança e num momento de raiva você fala que ela veio de uma gravidez indesejada, pode gerar um trauma, um complexo”, justifica o pai da criança que também não quer ser identificado.

O casal não escolheu nome algum para o bebê e decidiu não fazer enxoval. Assim que a criança nascer, será entregue para adoção. “Vamos querer conhecê-la para fazer nossa despedida. Desejamos que ela nasça com saúde e que tenha uma família que possa dar a ela todo amor que não podemos oferecer nesse momento. Queremos seguir nossa vida sem julgamento. É uma história que não precisa ser compartilhada”, contam.

Aborto

O Brasil não tem estatísticas oficiais, mas cerca de 800 mil mulheres por ano praticam abortos no país. Cerca de 200 mil recorrem ao Sistema Único de Saúde para tratar de sequelas de procedimentos mal feitos. Segundo a Organização Mundial de Saúde, os números podem ser ainda maiores por causa dos casos de subnotificação.

A legislação brasileira só permite que a mulher seja submetida ao aborto em três situações:

  • se a gravidez for decorrente de estupro,

  • se a mulher corre risco de vida e

  • quando o feto tem anecefalia que é a má-formação do cérebro.

“Identificada a gravidez, a mulher deve ser acolhida por uma equipe de saúde da família do seu centro de saúde. Ali vão ser solicitados uma série de exames, e, às vezes, naqueles exames já vão ser identificados se ela tem risco obstétrico e, se houver, ela vai ser encaminhada para um pré-natal de alto risco onde as consultas vão ser realizadas com intervalos menores”. A explicação é de Francisco Lírio Ramos Filho, coordenador da maternidade da Santa Casa de Belo Horizonte, maior hospital do estado que atende pelo SUS.

Francisco Ramos orienta que, quando a mulher opta por não ficar com o filho, ela deve ter consciência de que, se não ganhar o filho em um ambiente adequado, vai colocar em risco a saúde dela e do bebê. “Em poucas horas o recém-nascido pode desidratar e morrer, se não receber alimentação. Também há o risco de hipotemia, queda da temperatura do corpo provocada pelo frio, que pode levar à morte”, explica o coordenador da maternidade.


Na segunda reportagem da série ‘Entrega voluntária: um ato de amor’, entenda como funciona o processo da Entrega Legal e os desafios para tornar esse direito mais conhecido.

Entrega Voluntária: um ato de amor
  • Série de reportagens original da Itatiaia

  • De 31/10 a 03/11 no Jornal da Itatiaia 1a edição

  • Episódios em vídeo diários (31/10 a 03/11) no YouTube da Itatiaia .

  • Reportagens diárias em texto no Portal da Itatiaia.

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