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‘Especial Gestantes': série da Itatiaia aborda desafios da maternidade e a violência obstétrica no Brasil

Governo recebeu 172 denúncias de violência obstétrica de janeiro a agosto deste ano; primeiro episódio conta a história de uma mãe que perdeu a filha minutos após ser violentada no parto

Durante esta semana a Itatiaia apresenta uma série especial sobre gestantes. O que para muitas mulheres é um momento de realização de sonhos e contemplação, para outras é um período marcado por desafios e violência obstétrica. Durante cinco episódios, a repórter Clarissa Guimarães discute sobre a importância do pré-natal e explica quais são os serviços oferecidos à mãe e ao bebê no Sistema Único de Saúde (SUS).

No primeiro episódio, vamos conhecer a história da Ana Paula Garcia, uma mãe que sofreu violência obstétrica e perdeu a filha minutos após o nascimento em uma maternidade de Belo Horizonte.

“Doze horas depois [do nascimento da bebê], veio uma enfermeira no meu quarto perguntar se eu realmente queria fazer uma autópsia, porque eu não poderia levar o corpo dela naquele dia. [A enfermeira disse que] eu ia poder enterrar só em 20 dias, que ela ia sair do hospital no camburão e que eles iam me devolver ela cortada em quatro”, relembra.

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A história de Ana Paula é tão forte, intensa e violenta que é difícil não sentir a dor dessa mãe. Ana Paula, por várias vezes, desde que chegou na maternidade particular, foi agredida, silenciada e desacreditada.

Consciente da violência moral e psicológica que estava sofrendo, Ana Paula só tinha forças para lutar pela filha. Mas até esse direito foi negado a ela, já que no momento do nascimento prematuro, a recém-nascida não ficou ao lado da mãe, sendo levada às pressas para a UTI Neonatal.

A bebê respirou por apenas 55 minutos, quando veio a óbito. O caso aconteceu em 2011 e após a realização de um pré-natal rigoroso, com plano de parto e contratação de uma doula. Mesmo com os preparativos, a filha de resolveu nascer algumas semanas antes do prazo.

Defensora do parto natural, após o rompimento da bolsa Ana Paula foi às pressas para a maternidade. E um dia que deveria ter sido de alegrias, foi pra ela de grande tristeza. Vítima de violência obstétrica em vários níveis, Ana relembra todas as vezes em que foi silenciada e teve os direitos sobre o próprio corpo desrespeitado pela equipe médica.

“Eu pedi para o plantonista ligar para o meu médico, mas ele falou que não: ‘Se ele quiser ele que ligue para mim, eu não vou ligar para ninguém não. Já está nascendo’. Ele virou para a enfermeira e falou: ‘Olha, já chama anestesista, chama pediatra, você pai vai preencher papel, Ana Paula vai para a maca’. Eu falei assim: ‘Não, mas eu não quero anestesia não’. Ele virou para mim, deu uma risada, tanto que as enfermeiras riram junto, e falou: ‘você não é 'índia’ para parir sem anestesia não, você vai tomar anestesia sim”, conta Ana Paula.

“Minha filha nasceu e não chorou. Eles foram para reanimar ela, e ela fazia barulhos, mas não chorava em plenos pulmões. Eles levaram ela para a UTI e ela faleceu. Eles tentaram reanimar, mas ela faleceu 55 minutos depois do parto”, acrescenta.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o termo violência obstétrica refere-se à “apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou excessiva dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade dela em tomar as próprias decisões”. A advogada e socióloga Gabriela Salitti explica que o perfil das vítimas não está restrito a uma classe social e que a subnotificação esconde uma realidade ainda muito mais complexa.

“Enquanto as mulheres pobres sofrem um processo de animalização, dizendo: ‘eu fui tratada como bicho, ninguém me respeitou, eu fui tratada como um animal’, as mulheres de classe média sofrem um processo diferente, que é serem infantilizadas. É aquele médico que diz: ‘mãezinha não precisa pensar no parto porque isso deixa que eu resolvo’. Elas são infantilizadas, elas não participam das decisões sobre o seu próprio corpo. Fato é que ambas, as mulheres pobres e as mulheres com mais condições, elas saem extremamente frustradas, doloridas e traumatizadas desses processos”, afirma.

Ana Paula faz parte de uma triste estatística brasileira de outras centenas de mulheres que, em algum momento, também tiveram os direitos violados durante a gestação, na hora ou após o parto. Os dados, que podem ser subnotificados já que dependem da denúncia das vítimas, mostram que ao menos 172 denúncias chegaram ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania de janeiro a agosto deste ano.

Ainda há um agravante: uma denúncia pode conter uma ou mais violações de direitos humanos. Neste caso, eles saltam para 190. O Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ainda escancara uma outra realidade. Minas Gerais é o terceiro estado com mais denúncias, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Mas, Ana Paula não é uma estatística. É uma mãe que sentiu o peso de uma violência que por muito tempo deixou marcas e cicatrizes profundas, entre elas uma culpa que, na verdade, nunca foi dela. Descobrir isso foi um processo difícil. Ana Paula faz terapia, é casada e mãe de uma menina e um menino. Retomar a vida depois da dor é necessário, assim como contar e recontar essa história para evitar e alertar outras mulheres.

“O que está indeletável da minha alma é a violência que eu sofri, a forma que eu fui tratada. Se eu fui tratada assim, imagina como que ela [a bebê] foi tratar? Eu não gosto nem de imaginar”, desabafa.


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Jornalista graduada pelo Centro Universitário Newton Paiva em 2005. Atua como repórter de cidades na Rádio Itatiaia desde 2022
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