O episódio final da 4ª temporada de Casamento às Cegas Brasil, disponibilizado nessa quarta-feira (10), gerou polêmica entre espectadores nas redes sociais. No Reencontro, quando os integrantes se reúnem meses depois dos casamentos, a participante Ingrid Santa Rita denunciou o também participante do programa Leandro Marçal por abuso sexual, narrando investidas do então parceiro enquanto ela dormia.
O relato chama atenção para casos de violência sexual cometidos dentro de casa, pelos próprios parceiros das vítimas. Pensando nisso, a reportagem da Itatiaia conversou com Camila Rufato Duarte, advogada e cofundadora do Direito Dela, e Alessandra Margotti, advogada e professora universitária, doutora e mestra em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para saber o que diz a lei sobre esse tipo de crime.
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O que Ingrid contou no programa
Camila Queiroz e Klebber Toledo, apresentadores do reality, perguntaram a Ingrid sobre o status atual do relacionamento com Leandro, com quem se casou na temporada. Ela relatou que o casal não está mais junto e revelou o que aconteceu. Aos prantos, disse que Leandro a tocava sem seu consentimento enquanto ela dormia. "(Eu fiquei) pedindo pelo amor de Deus para você não tocar no meu corpo. Eu pedi para você não me tocar. Eu pedi mais de uma vez, Leandro. E você não me respeitava. Você não me ouvia. Você queria resolver seu problema erétil com você, era teu ego, eram suas mentiras”, lamentou ela.
“Primeiro eu dormia pelada, depois eu dormia de calcinha, depois eu passei a dormir de pijama, depois eu peguei o travesseiro e fui dormir no meu sofá, fugindo de você na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Você não me respeitou dia nenhum, por isso, eu terminei com você. No dia em que as minhas filhas me encontraram no chão, tendo uma crise de pânico, pedindo pelo amor de Deus para você não tocar no meu corpo, eu pedi para você não me tocar”, desabafou. “Porque você só queria manter aquele casamento da sua forma suja e imunda“, contou.
Por fim, Ingrid disse querer distância do ex-marido: “Eu tenho nojo de você. Eu quero deixar isso muito claro. Eu tenho nojo da sua voz. Eu tenho nojo da sua boca. Eu tenho nojo do jeito que você me olha. Eu não quero você perto de mim. Eu não quero aproximação nenhuma. Estou deixando isso muito claro para que todo mundo aqui ouça, eu não quero esse homem perto de mim. Você não tem o direito. Me dá o nome, Leandro, do que você fez comigo.”
De acordo com o relato, Leandro cometeu um crime?
“O crime denunciado pela participante é denominado estupro de vulnerável, está previsto no artigo 217-A, §1º do Código Penal Brasileiro. A tipificação penal prevê, entre outras situações, que quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com pessoa que, por qualquer causa, não possa oferecer resistência”, respondeu Alessandra Margotti.
Sendo assim, Leandro pode responder pelo crime que tem como pena simples de oito a quinze anos de reclusão. “Esse é o crime pelo qual possivelmente o participante poderá responder/ser processado. Como a participante narrou estar dormindo nas ocasiões de abuso, configura-se, em tese, a vulnerabilidade necessária à tipificação desse crime, devido à impossibilidade de oferecer resistência”, analisou Alessandra.
Estupro marital
Se o abuso ocorre em namoro ou casamento, é chamado “estupro marital”, que é quando ocorre o ato sexual forçado — seja por ameaça física ou emocional. “A gente tende a imaginar que o estupro só acontece quando não há um relacionamento. Imaginamos situações como a do jogador Daniel Alves. Mas é importante que a gente reforce que a falta do consentimento é crime de estupro. Se a pessoa diz não, ou se ela não tem condição de dizer não, é um estupro”, explicou Camila Rufato.
A advogada acrescenta que não faz diferença ter havido conjunção carnal. Atos libidinosos ou carícias íntimas já configuram estupro. “É importante pontuar que, para acontecer o estupro, não necessariamente tem que haver a penetração do órgão sexual masculino no órgão sexual feminino”, explicou.
Exibição do programa e investigação
As especialistas explicam que todos os crimes contra a dignidade sexual (assédio, estupro, estupro de vulnerável, importunação) se dão por ação penal pública incondicionada, o que significa que a autoridade policial tem a obrigação de inaugurar a investigação — independentemente da iniciativa da vítima.
“Esse tipo de crime é de Ação Penal Pública Incondicionada, o que significa que independe da vontade ou representação da vítima para que a pessoa acusada de ter praticado o crime seja processada e, eventualmente, condenada criminalmente por tal ato ilícito. Mesmo se a vítima se manifestar para desincentivar a persecução criminal, dizendo expressamente, por exemplo, que não gostaria que ele fosse processado, ainda assim, chegando a possível prática desse crime ao conhecimento estatal, a pessoa acusada será ao menos investigada criminalmente”, disse.
Segundo Alessandra, a Polícia Civil é a instituição responsável por instalar e proceder à investigação desse tipo de crime. Segundo ela, a exibição do episódio é suficiente para isso.
As especialistas ressaltam a dificuldade enfrentada pelas vítimas para comprovar que foram violentadas pelos próprios parceiros. “Essa é uma das situações mais delicadas, porque é uma violência sexual que muitas das vezes não deixa marcas físicas. Além de ser difícil de comprovar, a mulher tem que lidar com resistência social em entender que esse tipo de violência pode acontecer no casamento”, explicou Camila.
Conforme Alessandra, além de seu próprio depoimento, para trazer mais força às suas palavras, é recomendável, quando possível, tentar produzir provas documentais digitais, como fotos, vídeos, áudios. “Tendo ocorrido a violência, o corpo de delito também é uma importante evidência probatória para fundamentar a condenação do agressor em processo criminal. Além disso, quando há testemunhas, também costumam ter bastante relevância”, explicou.
As autoridades estão investigando?
À Itatiaia, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) informou que, até o momento, não recebeu nenhuma investigação sobre o assunto. A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil de São Paulo e aguarda um posicionamento.
A Netflix, a Endemol Shine Brasil e a equipe do Casamento à Cegas Brasil informou, por meio de nota, que “repudiam veementemente qualquer tipo de violência. A produção, em todas as suas etapas, é conduzida com constante apoio profissional aos participantes, e as denúncias apresentadas estão sendo apuradas pelos órgãos competentes.”
Combate desse tipo de crime
Para Alessandra, enfrentar esse problema passa por promover a educação sobre consentimento e fortalecer as leis e políticas de educação sexual e proteção às vítimas.
“A dificuldade em se denunciar tais crimes se dá, sobretudo, por medo da vítima de sofrer julgamento morais, repressão e retaliação por parte dos parceiros e das pessoas próximas; por eventual dependência econômica e emocional; pelo estigma social, considerando o tabu em torno do assunto”, analisou. Ela mencionou, ainda, a falta de suporte e proteção adequados, tanto por pessoas próximas quanto por instituições.