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Caso Daniel Alves: especialistas em direto das mulheres rechaçam fala de jogador, ‘cultura do estupro’

Durante sua primeira entrevista após ser acusado de estupro, Daniel Alves afirmou que a vítima mentiu, mas que “perdoa” ela

O jogador é acusado de ter abusado de uma mulher em dezembro, na boate Sutton, em Barcelona

Nessa quarta-feira (21), o jornal espanhol La Vanguardia divulgou a primeira entrevista de Daniel Alves desde que o jogador foi preso no dia 20 de janeiro por uma acusação de estupro. Na ocasião, ele diz que “perdoa” a vítima e que ainda não entende as motivações que levaram a jovem a fazer a denúncia.

As falas de Daniel Alves provocaram revolta nas redes sociais, e internautas, jornalistas e especialistas apontaram diversas problemáticas do discurso do lateral da Seleção Brasileira. A apresentadora da Globo News, Andreia Sadi, deixou sua indignação nas redes sociais.

“Sério? Daniel quer tratar a prisão como se fosse uma ‘traição’. Só que não. Daniel está preso ACUSADO PELO CRIME DE ESTUPRAR uma mulher de 23 anos. Justiça já negou recurso, inclusive, de sua defesa pedindo soltura. Ele já mudou várias vezes de versão. E, agora, essa. É inacreditável”, escreveu.

Junto com Sadi, outras pessoas chamaram a atenção para como são retratadas as mulheres que denunciam um abuso sexual. Raissa Baêta, advogada especializada em violência doméstica e de gênero, comenta que a entrevista de Daniel Alves perpetua um ciclo de violência contra as mulheres.

“Ao falar que perdoa a vítima, ele está reproduzindo a submissão dela perante a sociedade, transgredindo direitos humanos mais básicos, de integridade física e psicológica. O poder sexual do homem está enraizado e dá a ele o direito do perdão”, comenta.

Cultura do Estupro

O termo cultura do estupro tem sido usado desde os anos 1970 nos Estados Unidos, mas ganhou destaque no Brasil em 2016, após a repercussão de um estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro. No episódio, os criminosos filmaram e divulgaram as imagens do estupro.

Relativizar, silenciar e culpar a vítima são comportamentos que compõe a cultura do estrupo. “A cultura do estupro é definida como artificio usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa a vítima de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens”, defende a advogada.

“Eu te perdoo”

“A história que foi contada, assustadora de medo e terror, não tem nada a ver com o que aconteceu, nem com o que eu fiz. Eu a perdoo. Ainda não sei porque ela [a vítima] fez tudo isso, mas a perdoo”, disse Daniel Alves ao jornal espanhol.

A especialista destaca que esta fala ilustra como uma mulher que denuncia um abuso se torna a suposta agressora. Para Raíssa Baêta, ao falar que perdoa a mulher, Daniel Alves transfere a responsabilidade do ocorrido para ela.

“O acusado, muitas vezes, não precisa de vitimizar, só por existir ali, ainda mais quando envolve uma relação de poder, dinheiro e fama. Ao mencionar que perdoa a vítima, ele a coloca no processo claro de culpabilização, há muito da peculiaridade do crime de estupro enraizado, porque há um claro deslocamento do episódio principal para o comportamento social da vítima”, disse.

Outro ponto que chamou a atenção da advogada foi quando Daniel Alves disse que decidiu participar da entrevista “para que as pessoas saibam o que penso”. Raíssa entende que este posicionamento do jogador realça um privilégio dele em relação à vítima.

“Homens são alvos privilegiados da punição e mulheres são silenciadas, há um comportamento adequado esperado de uma mulher, mas do homem, por outro lado, há espaço para diálogo. A palavra dele jamais é questionada. Podemos perceber que a entrevista em nenhum momento foi interrompida. Ele não precisa se vitimizar, a sociedade faz isso por ele”, afirmou.

A especialista, inclusive, lamentou a entrevista: ‘’Quando os meios de comunicação abrem espaço para entrevistar o homem acusado do crime, quando a notícia é reverberada inúmeras vezes sem que se toque na real raiz do problema, que é a cultura do estupro, essa vítima é revitimizada, inúmeras vezes. Todas as vezes que o agressor tem voz, tem escuta, tem acolhimento, a vítima é culpabilizada e revitimizada. Quando um acusado de estupro se sente a vontade para dizer que perdoa a vítima, falhamos como sociedade”.

A reação

Na entrevista, Daniel também relatou a sua versão do que aconteceu na noite do dia 30 de dezembro. O jogador contou que a relação sexual entre ele e a mulher no banheiro da boate foi consensual.

Após sair do reservado, Dani diz que voltou para a mesa onde estavam seus amigos, e que na hora de ir embora, ele passou ao lado da vítima, que estava chorando. O atleta relata que não viu a vítima, mas que se tivesse visto, perguntaria o que estava acontecendo. O jogador ainda conta que voltou para casa depois da noite na boate e que se sentiu envergonhado da traição sua esposa, o esperando em casa.

A advogada destaca que, quando uma pessoa é vítima de um crime de roubo, por exemplo, o é aconselhado não reagir. Mas, ao tratar de um crime de estupro, é esperado da vítima um comportamento diferente: “quando estamos falando de um crime de estupro é necessário resistir bravamente. Quem comete o crime de estupro não tem vergonha e nem quer esconder, é uma posição confortável a do agressor, todas as regras do jogo o favorecem”.

O divórcio

Na data em que a vítima acusa o atleta, Daniel Alves era casado com a modelo Joana Sanz. O relacionamento do casal começou em 2016, e em março de 2023, Joana anunciou o divórcio do jogador após as acusações.

Na entrevista ao La Vanguardia, Daniel pede desculpas à ex-esposa. “Decidi falar para pedir desculpa à única pessoa a quem tenho de pedir desculpa, que é a minha mulher, Joana Sanz. A mulher com quem me casei há oito anos, com quem ainda sou casado e espero viver com ela por toda a minha vida”, disse.

A fala de Daniel, também, denuncia a forma que os homens enxergam as mulheres. A advogada destaca que a sociedade separa mulheres que são “para casar” e mulheres que “não são para casar”.

“Quando ele usa a imagem da esposa e menciona que ela merece perdão, percebemos que não será qualquer mulher que pode ser considerada vítima, nem qualquer homem é considerado estuprador”, aponta a especialista, acrescentando não haver um perfil de abusadores. “Encontram-se em todos os lugares e classes sociais”.

Segundo dados do Mapa da Violência de 2022, o Brasil registra cerca de 2 estupros por minutos. Destes, 46,6% ocorrem dentro de casa, praticado pelo cônjuge ou companheiro da vítima. Outros 15,4% dos estupros são praticados por amigos, colegas ou vizinhos da vítima.

Ruptura com a violência

“Podemos dispersar a cultura do estupro quando não revitimizamos a vítima, quando não colocamos a sua palavra, a sua roupa, ou o local que estava como o ponto. O foco, quando falamos de estupro, precisa ser a violência sexual e não o comportamento da vítima”, acrescentou.

A especialista reafirma a importância na ruptura com o patriarcado e com a concepção da dominação masculina. “Isso além de uma melhoria nas informações disseminadas pela mídia, bem como a conscientização da sociedade, buscando um sistema jurídico e social igualitário”, finalizou.

O julgamento

Preso desde o dia 20 de janeiro em Barcelona acusado de crime sexual, Daniel Alves está próximo de seu julgamento. O brasileiro de 40 anos irá prestar contas com a Justiça da Espanha entre outubro e novembro deste ano, segundo o jornal espanhol El Periodico.

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.