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Luísa Sonza surpreende ao conversar com a MPB de Chico Buarque e Rita Lee

Novo álbum da artista, ‘Escândalo Íntimo’ mescla narcisismo com submissão, em faixas que apresentam a estrutura de um filme

Luísa Sonza bateu recordes nas plataformas digitais com seu mais novo álbum, ‘Escândalo Íntimo’

A música pop sempre foi esse “balaio de gato” onde cabe tudo e mais um pouco. A mistura está na gênese de seu espírito globalizador, assim como a repetição, primordial para atingir o objetivo que define sua natureza: a comunicação de massa.

Logo, a música pop constitui, em si, o paradoxo da pluralidade que se transforma em uniformidade, o que, quase sempre, vira camisa-de-força através da fórmula, que determina elementos como duração, refrão e até palavras e acordes a serem utilizados à exaustão.

E começam a pulular artistas em que não é possível distinguir onde começa um e termina outro, tamanha a semelhança. Andy Warhol puro, sem anestesia. Aparentemente, Luísa Sonza tentou se desvencilhar dessa prisão em seu novo álbum, embora com as habituais concessões ao mercado.

“Escândalo Íntimo”, terceiro disco de estúdio de uma trajetória iniciada em 2019 na indústria fonográfica, opera ainda na lógica pop, onde, além de tudo que já foi dito, o apelo visual prepondera sobre as demais circunstâncias.

Na capa do lançamento, a cantora gaúcha aparece com a imagem distorcida, assumindo uma artificialidade tecnológica que traz algo de bizarro, ao contrário da sensualidade provocadora do disco anterior, “Doce 22”. O primeiro videoclipe divulgado, “Campo de Morango”, também segue essa tendência ao insólito.

Os letreiros que surgem na tela dão a letra sobre a influência dos filmes de terror, enquanto o discurso abertamente sexual aproxima o clipe do universo onírico de “A Bela Tarde”, clássico surrealista de Luis Buñuel, em que uma mulher burguesa entediada com o rame-rame de sua existência decide se prostituir na busca de alguma emoção genuína.

Ao se lambuzar de morangos que pintam seu corpo com cor de sangue, Luísa quebra o bom gosto e confere à excitação uma carnalidade que chega a ser incômoda. Acelerada, a letra coloca o sexo no centro de sua linguagem, ora de maneira explícita, como é habitual no funk, outrora com a puerilidade do duplo-sentido.

Mas é o outro clipe divulgado nas redes pela artista que serve como bússola para esse trabalho. “Principalmente Me Sinto Arrasada” divide-se em três partes que podem ser entendidas como as fases de um filme. O álbum deixa claro seu diálogo com o cinema e sua estrutura narrativa, fundamentada em início, meio e fim. O conceito que rege “Escândalo Íntimo” é o da progressão linear, e não circular.

Na primeira parte, temos o discurso direto, explícito, autoafirmativo e narcisista. Aqui é o desabafo que dá o tom. Pouca ou nenhuma mudança se nota em relação a outros momentos da carreira de Luísa. O narcisismo é a principal característica de uma geração carente de sonhos e projetos coletivos, guiada por aspirações de ordem individual, e isolada nessa multidão.

A segunda parte cede espaço à submissão, Luísa baixa a guarda e permite colocar o outro no centro de seu discurso, se torna mais reflexiva, tem menos certezas e mais dúvidas, e soa, inclusive, lírica. Não é por acaso que ela passa a conversar com a MPB de Chico Buarque, astro absoluto desse panteão, e depois com Rita Lee, falecida recentemente, aos 75 anos.

A faixa que abre esse momento é “Iguaria”, com vocação para balada e afeita a tocar em novelas. “Chico” é, ao mesmo tempo, uma homenagem ao atual namorado e uma paquera com o ícone da MPB, através do verso “sou dessas mulheres”, referência à “Folhetim”, história sobre uma prostituta, que Gal Costa lançou.

Sem falar na harmonia da melodia, muito distante do batidão que praticamente abafa a voz de Luísa na parte inicial, assumidamente pop, em que a dicção é menos importante do que o ritmo incessante das palavras que se repetem e têm pouca relevância isoladamente.

“Surreal”, com Baco Exu do Blues, deixa à vista o afã do rapper em demonstrar, por meio do rebuscamento e da citação a Salvador Dalí, algum eruditismo. Já “Onde É Que Deu Errado?” resume as duas fases anteriores: após o desabafo da autoafirmação narcisista e o romantismo da submissão lírica, Luísa pode seguir adiante. Ultrapassada a purgação, a cantora desenvolve a terceira parte, da satisfação.

A faixa em homenagem a Rita Lee, “Lança Menina”, pertence a esse momento conclusivo. Luísa recupera a inocência de uma pureza perdida, canta com otimismo e acredita na alegria, no estilo “good vibes” que configura, no Brasil, o que ficou conhecido como “MPB Fofa”, em que se destacam Mallu Magalhães, Anavitória, Tiê, Clarice Falcão, dentre outras.

Enfim, é uma relação de conciliação e conformidade em relação à existência, viés oposto à indignação do desabafo. “Não Sou Demais” finaliza, por ora, o álbum nessa toada. Como todo produto de marketing e entretenimento, a música pop se alimenta da publicidade e conversa sem constrangimento com os algoritmos, o que levou Luísa a bloquear algumas faixas, a serem liberadas em breve. Resta saber o que ela fará com “You Don’t Know Me”, uma das mais belas músicas de Caetano Veloso. Além dela, há outras cinco faixas que ainda resguardam seu mistério.