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Alcione completa 75 anos; Relembre sucessos e raridades da cantora

Nascida em São Luís do Maranhão, ela começou a carreira musical tocando trompete e se tornou ícone do samba

A voz potente e grave de Alcione imortalizou sucessos como ‘Gostoso Veneno’, ‘Você Me Vira a Cabeça’ e ‘Meu Vício É Você'

De São Luís do Maranhão para o Brasil, aonde trabalhava como professora primária e trompetista, Alcione nunca deixou de cantar o amor, mas um amor específico, marcado pelas dores e as separações. Porém, a atitude da intérprete frente a esses deslizes do romantismo não é sempre a mesma.

A voz de Alcione passeia pelas desilusões amorosas com a entrega e a angústia de quem muitas vezes se cortou, mas é também capaz de legar ao drama uma pitada de sátira, deboche, e, principalmente, determinação em seguir em frente que atrás vem gente.

Dona de uma das vozes mais características da música brasileira e interpretação, como diria o outro, de arrebatar multidões, Alcione machuca, sim, o coração, mas o faz com a ginga e o ritmo do nosso samba. Por saudades, rancor ou mágoa, o amor dança no canto intenso da intérprete...

“De Babado” (samba, 1936) – Noel Rosa e João Mina

A admiração de João Nogueira por Noel ficou marcada para a posteridade ao musicar “Ao Meu Amigo Edgar”, carta do filho pródigo de Vila Isabel para seu médico, elevando-o a parceiro de um de seus ídolos. A admiração vinha de longe, afinal o pai de João tocara com o autor de “Conversa de Botequim”, da deliciosa “De Babado” (em dueto com Alcione), e de “Feitio de Oração”, todas revisitadas por João, a última com o amigo Luiz Melodia. Para o patriarca, ele compôs “Espelho” (com Paulo César Pinheiro), título do álbum de 1977, e uma das mais comoventes canções a respeito da relação entre pai e filho, tanto em função da letra quanto da melodia densa, levemente melancólica. Uma beleza.

“Amendoim Torradinho” (valsa, 1955) – Henrique Beltrão

Quando Carmen Miranda brincou com o duplo sentido na carnavalesca “Eu Dei”, de 1937, ela teve que se valer dos versos de Ary Barroso. O mesmo aconteceu com a cantora portuguesa Vera Lúcia, primeira intérprete da lânguida e sensual “Amendoim Torradinho”, obra de Henrique Beltrão lançada por ela em 1955, e que depois ganhou as vozes de Ney Matogrosso, Angela Maria, Alcione, Dóris Monteiro e Ivon Curi, entre outros. O fato ainda era comum no ano em que Maria Bethânia gravou, “O Meu Amor”, de Chico Buarque, em 1978, até que uma nova geração de compositoras decidisse abordar o sexo com as próprias palavras, como Angela Ro Ro, Rita Lee, Vanessa da Mata, MC Carol e Karol Conká.

“Não Suje Meu Caixão” (samba, 1969) – Panela e Garrafão

O Brasil é um país cuja arte popular supera, em muito, a arte erudita. Não foi sem uma dose de razão e radicalismo que Miles Davis disse: “existe a música negra americana, a música erudita europeia e a música popular brasileira”. Pois residem nessas raízes nossas maiores riquezas. Basta olhar com cuidado para o folclore, para as cantigas, as cantilenas, as danças típicas como o frevo, o baião, o xote, os ritmos como o samba, o forró, o maracatu. Ou seja, toda a nossa arte mais conhecida e reconhecida emerge dessas camadas.

Sem sombra de dúvidas, e à luz das dificuldades, dos trancos e barrancos diários. Como não poderia deixar de ser, nossos heróis trazem no nome a assinatura deste ambiente criativo e fértil. Mesmo no futebol nosso Rei se chama Pelé, e o Príncipe é um Garrincha. Pois na música brasileira de Batatinha, Blecaute, Jamelão, Pixinguinha, Garoto, Dominguinhos, Gordurinha, Cartola e tantos outros, temos também Panela e Garrafão, autores do samba “Não suje meu caixão”, lançado em 1969 e cantado por Alcione, Antônio Moreira e seu autor mais do que repetido e celebrado, com usos diversos e inusitados: Panela!

“Juízo Final” (samba, 1975) – Nelson Cavaquinho e Elcio Soares

O reconhecimento à obra de Nelson Cavaquinho começou a se dar de forma mais intensa na década de 60, embora ele mesmo não demonstrasse preocupação com isso. A partir das gravações de Ciro Monteiro, Nara Leão e Elizeth Cardoso, outros nomes passaram a se associar ao de Nelson, a exemplo da mangueirense Beth Carvalho, com quem ele participou do Projeto Pixinguinha em 1978, e da portelense Clara Nunes. Em 1970, ele próprio ganhou a oportunidade de gravar suas músicas em um disco que levava seu nome, lançado pelo selo Castelinho, que logo iria falir, tendo o registro que ser relançado em 1974 pela Continental.

Nessa gravação, Nelson era entrevistado pelo jornalista Sérgio Cabral, a cronista Eneida e o apresentador Sargentelli, além de ser anunciado por Elizeth Cardoso e acompanhado por Altamiro Carrilho. Dois anos depois, Nelson lançou seu segundo LP, através da “Série Documento” da RCA Victor. E em 1973, seu derradeiro registro solo, onde cantava pela primeira vez ao lado do parceiro eterno Guilherme de Brito, com produção de Pelão, levado ao mercado pela Odeon.

Nesse último, Nelson Cavaquinho tocava pela primeira vez em disco o instrumento do apelido. Com seu nome bastante consolidado no mercado, Clara Nunes lançou no seu álbum “Claridade” de 1975, a música esperançosa de Nelson que decretava a chegada do sol no seu horizonte, a vitória do bem sobre o mal, a luz a brilhar nos corações. O amor será eterno, era o seu “Juízo Final”.

“Água Benta” (samba, 1978) – Ratinho e Sombrinha

Um dos méritos do grupo “Os Trapalhões” era rir dos estereótipos que eles próprios representavam, fazendo troça não do outro, mas de si. Em seu disco de estreia como artista solo, após uma longa jornada como integrante dos “Originais do Samba”, onde se habituara a soltar a voz e comandar o reco-reco, Mussum escolheu um samba de Ratinho e Sombrinha, intitulado “Água Benta”.

Com participação de seu “estepe”, como diz Alcione, e da madrinha do samba que o humorista carinhosamente chama de “comadre”, a canção lançada em 1978, traz uma óbvia ironia que só poderia estar contida na boca de Mussum. Afinal o “Mumu da Mangueira” cantando uma canção chamada “água benta” já é motivo suficiente para muita risada, festa e “mé” à vontade! Só “mais uma beiçada”, diz o próprio!

“Gostoso Veneno” (samba, 1979) – Wilson Moreira e Nei Lopes

Foi em um raro show de Aldir Blanc, que mal saía de casa, menos ainda pra cantar, que Moacyr Luz conheceu Rogério Batalha, outro lírico, com quem ele assina as dez parcerias que compõem “Antes Que Tudo Acabe”, disco que acaba de ser lançado pela Biscoito Fino, já disponível nas plataformas digitais. Na ocasião, Batalha entregou para Moacyr um livro de poesias, do qual ele extraiu a letra do samba “Malícia”, agora cantado por Douglas Lemos. Começava ali a parceria, que também rendeu homenagem ao bamba Wilson Moreira (1936-2018), autor de sucessos como “Gostoso Veneno”, lançada por Alcione, “Goiabada Cascão”, hit na voz de Beth Carvalho, e “Judia de Mim”, parceria com Zeca Pagodinho.

“O Casamento dos Pequenos Burgueses” (MPB, 1979) – Chico Buarque

Chico Buarque se vale de uma expressão originária do “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels para dar título a uma divertida música composta para a sua “Ópera do Malandro”. “O Casamento dos Pequenos Burgueses” tira onda com as expectativas matrimoniais concernentes a essa moderna classe média, ao apresentar uma realidade bem diferente da idealizada. Gravada em dueto pelo autor com Alcione – que se revezam no papel de marido e mulher –, a música parte de uma relação baseada na hipocrisia das aparências, até desandar em agressões pra lá de explícitas, com um verso que se repete e adquire a forma de punição: “Vão viver sob o mesmo teto”. A imagem final é a de uma típica crônica de costumes de Nelson Rodrigues: “A Vida Como Ela É…”.

“Rio Antigo” (samba, 1979) – Chico Anysio e Nonato Buzar

Chico Anysio compôs o samba “Rio Antigo” no ano de 1979, em parceria com Nonato Buzar, um dos nomes do movimento conhecido como “Pilantragem”, liderado por Carlos Imperial. A música estourou na voz de Alcione, e ficou conhecida pelo prefixo de “Como Nos Velhos Tempos”. Anos mais tarde, Chico e Mussum gravaram uma descontraída versão da música, em que imitavam seus personagens mais famosos. Aliás, foi Chico quem deu as dicas para Mussum criar a personagem que o consagraria como o mais querido dos Trapalhões, inventando plurais e colocando um ‘S’ no final de todas as frases.

“E Vamos à Luta” (samba, 1980) – Gonzaguinha

Durante a sua trajetória, Gonzaguinha conviveu com a pobreza na favela, problemas de saúde como as duas tuberculoses que teve, e a falta de liberdade imposta pela ditadura. Apesar disso, deu um jeito de driblar as armadilhas para conquistar o que achava que tinha direito. “E Vamos à Luta” é talvez o samba mais animado, emblemático e contagiante de sua obra.

A música é um recado otimista de persistência e coragem, direcionado aos brasileiros que batalham seu lugar ao sol diariamente, com espaço para uma fezinha especial na juventude. Através dos versos esfuziantes da canção, Gonzaguinha cultiva as delícias da união e do sonho. Gravada por ele em 1980, a música foi apresentada depois em duetos descontraídos com Alcione e Roberto Ribeiro.

“Forró do Xenhenhém” (xaxado, 1985) – Cecéu

Mary Maciel Ribeiro, mais conhecida como Cecéu, formou uma dupla de sucesso com o compositor Antônio Barros tanto na vida quanto na carreira, já que os dois, além de casados, criaram vários clássicos da música nordestina. Em 1985, Cecéu compôs o xaxado “Forró do Xenhenhém”, imediatamente lançado por Alcione com enorme sucesso nacional. Anos depois, Elba Ramalho se apropriou de tal forma da canção que ela passou a ser indissociável de sua personalidade. “Forró do Xenhenhém” é hoje indispensável em qualquer show de sucessos da cantora paraibana. A música é uma daquelas que agrega malícia e sensualidade a uma graça irresistível.

“Quando Eu Contar, Iaiá” (samba, 1986) – Serginho Meriti e Beto Sem Braço

Serginho Meriti já gravou cinco discos, sendo que o mais recente é “A Luz do Nosso Povo”, lançado em 2005. No último disco de Maria Bethânia, “Noturno”, que chegou à praça em julho de 2021, ela apresentou “Cria da Comunidade”, inédita de Serginho Meriti e Xande de Pilares. Em 1986, ele alcançou enorme sucesso popular com o samba “Quando Eu Contar, Iaiá”, parceria com Beto Sem Braço, gravada por Zeca Pagodinho, Alcione, Sombrinha, Arlindo Cruz e pelo próprio Serginho, reforçando essa sua profunda identificação com o povo.

“Meu Vício É Você” (romântica, 1987) – Carlos Colla e Chico Roque

Carlos Colla nasceu em Niterói, no dia 5 de agosto de 1944, e ficou conhecido como um dos compositores preferidos do Rei Roberto Carlos, além de compor versões para músicas estrangeiras que alcançaram enorme sucesso com José Augusto, Legião Urbana, João Paulo & Daniel, Luan & Vanessa. Sandra de Sá, Tim Maia e Alcione também gravaram suas canções. Carlos Colla e Chico Roque compuseram em 1987 para Alcione uma canção derramada, romântica, bem ao estilo da cantora: “Meu Vício É Você”. A canção fez enorme sucesso e voltou a figurar em outros trabalhos da Marrom, além de ter sido regravada por Elymar Santos, outro cantor romântico associado à discografia de Carlos Colla. “Meu vício é você/ Meu cigarro é você...”, cantam.

“Dona Zica e Dona Neuma” (samba, 1990) – Nei Lopes, Carlinhos 7 Cordas e Zé Luiz

Duas personalidades do Carnaval carioca, ligadas à Estação Primeira de Mangueira, são homenageadas no samba “Dona Zica e Dona Neuma”, composto pela tríade formada por Nei Lopes, Carlinhos 7 Cordas e Zé Luiz. Última esposa de Cartola, Dona Zica tornou-se conhecida Brasil afora quando fundou com o marido o histórico bar Zicartola, que recebia bambas como Paulinho da Viola, Zé Kéti, Nara Leão, Nelson Cavaquinho, dentre outros. Fundadora do Bloco dos Arengueiros, que deu origem à Mangueira, e considerada Primeira-Dama da escola, Dona Neuma recebia em casa Noel Rosa, Villa-Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque. Nesse samba contagiante, de 1990, Alcione diz: “Foi descoberta a vacina que vence e domina, cura e fortifica”.

“Você Me Vira a Cabeça” (bolero, 1994) – Paulo Sérgio Valle e Chico Roque

Paulo Sérgio Valle se tornou um sucesso de público sem jamais ser reconhecido pelo rosto. Sua veia popular pode ser comprovada em hits como “Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim”, parceria com Herbert Vianna lançada por Ivete Sangalo, “Essa Tal Liberdade”, que grudou igual chiclete com o grupo de pagode Só Pra Contrariar, e “Você Me Vira a Cabeça”, o bolero derramado que Alcione gravou com direito a todos os exageros do gênero. Feita com Chico Roque, a canção tem a medida dos corações devastados: “Você não me quer de verdade/ No fundo eu sou tua vaidade/ Eu vivo seguindo teus passos/ Eu sempre estou presa em teus laços”.

“O Homem dos Três Corações” (samba, 2020) – Altay Veloso e Paulo César Feital

“O samba é um passaporte, a nossa principal carteira de identidade, assim como o futebol”, compara Alcione. Flamenguista e torcedora devota da Seleção Brasileira, ela presta reverência ao Rei do Futebol e Atleta do Século, nascido no interior das Minas Gerais, em “O Homem dos Três Corações”, de Altay Veloso e Paulo César Feital, que combina versos com a agilidade de uma troca de passes: “Um drible da vaca na dor da ilusão, no revés/ Os deuses ao verem Arantes improvisar/ Assim como fazem artistas de jazz/ E rompem as regras que nem Holiday no piano-bar/ Perguntaram quem é esse homem de três corações a dançar?”. A música foi lançada em seu mais recente álbum, “Tijolo por Tijolo”.