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Há 32 anos o Brasil perdia Cazuza, morto aos 32, após sucessos e polêmicas

Cantor e compositor carioca deixou canções que permanecem atuais, como ‘Brasil’, ‘O Tempo Não Para’, ‘Ideologia’ e ‘Burguesia’

Cazuza se apresenta em 1988, em show no Canecão que lançou ‘O Tempo Não Para’

Cazuza era Logun Edé, era a cara do Brasil, a cara do deboche, uma mentira sincera dita por um anjo rebelde que beijava o sexo de homens e mulheres, e que depois de muito voar, voou mais do que longe até o azul infinito. Questionado pela jornalista Marília Gabriela sobre a quem direcionava o seu desprezo total, Cazuza não titubeou, como era de seu feitio.
“Eu tenho desprezo total pela direita e pela igreja. Eu acho a direita uma coisa tão mesquinha, o poder individual. A Aids caiu como uma luva, modelinho perfeito da direita e da igreja. A Aids caiu assim como um tailleur para eles, que nunca estiveram tão elegantes. E deselegantes, principalmente”, disparou.

Além da coragem e do humor ácido, outra característica de Cazuza era a comunhão, o que possibilitou diversos encontros durante a sua vida e parcerias com os mais variados artistas.

“Todo Amor Que Houver Nesta Vida” (rock, 1982) – Cazuza e Roberto Frejat

Em “Todo Amor Que Houver Nesta Vida”, lançada pelo grupo Barão Vermelho em seu disco de estreia, no ano de 1982, Cazuza delimita bem os espaços de conflito entre o corpo e a mente. Na ânsia de possuir o parceiro em toda a sua plenitude, agilmente faz uma ressalva. “E se eu achar a tua fonte escondida/ Te alcanço em cheio o mel e a ferida/ E o corpo inteiro feito um furacão/ Boca, nuca, mão, e a tua mente não”. E completa a metáfora com mais uma imagem poderosa que liga o corpo aos prazeres da carne. “Ser teu pão, ser tua comida”. Lançada como um rock, foi regravada por Caetano Veloso em clima menos hostil e mais sereno, incorporado na gravação solo de Cazuza em 1988.


“Beth Balanço” (rock, 1984) – Cazuza e Roberto Frejat

Feita sob encomenda para o filme homônimo dirigido por Lael Rodrigues em 1984, “Beth Balanço” confirmou a ascensão do Barão Vermelho na cena do rock nacional naquele período, no esteio de outros sucessos presentes no terceiro álbum da banda, o último com a presença de Cazuza nos vocais, como “Maior Abandonado” e “Por Que a Gente É Assim?”.

Interpretada no filme pela protagonista Débora Bloch, a música conta a trajetória da estudante mineira que vai ao Rio de Janeiro em busca do estrelato. Os versos sempre precisos e afiados de Cazuza transformaram a canção em clássico. “Quem tem um sonho não dança, Beth Balanço, meu amor, me avise quando for embora”. A música foi regravada por Lulu Santos, que trabalhou com Cazuza na Som Livre.


“Mal Nenhum” (rock, 1985) – Cazuza e Lobão

Similaridades de comportamento e gostos em comum uniam Lobão e Cazuza. Em 1985, ambos expulsos de seus respectivos grupos, Barão Vermelho e Os Ronaldos, encontraram-se no Baixo Leblon e, por sugestão de Cazuza, iniciaram parceria musical. A música “Mal Nenhum”, lançada por Cazuza em seu primeiro disco solo, “Exagerado”, de 1985, foi apresentada pelo cantor pela primeira vez durante o “Rock In Rio” daquele ano, ainda na companhia do grupo “Barão Vermelho”.

Antes de cantá-la, Cazuza faz uma defesa, a seus modos, de Lobão. O autor da letra afirma que o texto diz respeito a “uma fase em que nem eu me aguentava. Andava meio agressivo e o Lobão estava parecido comigo”. Já Lobão, responsável pela melodia diz que “apesar de parecer simples, foi bastante trabalhada”. O que emerge deste conjunto é uma música visceral, lírica, recado de uma geração para seus afetos e opressores. Regravada, entre outros, por Lobão, Cássia Eller e Arnaldo Antunes.


“Exagerado” (rock, 1985) – Cazuza, Leoni e Ezequiel Neves

“Tem esse paradoxo do que é força e do que é fraqueza. A que ponto a gente é levado a pensar que está sendo forte, porque vive num mundo cada vez mais individualista, egoísta, em que o amor ‘Exagerado’ que o Cazuza cantava e que o próprio Roberto Carlos coloca em ‘Sua Estupidez’ é visto como démodé. As pessoas têm vergonha de assumir que estão sofrendo, que sentem falta”. As palavras são da cantora alagoana Flora que, em 2020, lançou seu disco de estreia: “A Emocionante Fraqueza dos Fortes”.

Título do primeiro LP da carreira solo de Cazuza, a música “Exagerado” tornou-se praticamente um emblema da personalidade do artista, que nunca escondeu a postura entregue e derramada tanto no palco quanto na vida. Parceria com Leoni e o fiel escudeiro Ezequiel Neves, ganhou regravações de Arnaldo Antunes, Paulo Ricardo, Herbert Vianna.


“Codinome Beija-Flor” (balada, 1985) – Cazuza, Ezequiel Neves e Reinaldo Arias

Ao lado de Cazuza, considerado o “Rei do baixo Leblon”, Luiz Melodia era visto com frequência na badalada noite do Rio de Janeiro. A capacidade como cantor rendeu um elogio inédito de Lucinha Araújo, mãe de Cazuza (1958-1990), que considerou o registro de Melodia para “Codinome Beija-Flor” melhor do que a do próprio rebento.

“Ele se apropriava das canções”, garante Toninho Vaz, autor da biografia “Meu Nome É Ébano: A Vida e a Obra de Luiz Melodia”, lançada em 2020. Cazuza compôs os versos de “Codinome Beija-Flor” deitado em uma cama de hospital, numa das internações para tratar a Aids que o levou aos 32 anos, enquanto observava beija-flores na janela. Depois, a letra recebeu acréscimos do amigo Ezequiel Neves e de Reinaldo Arias, até ser incluída em “Exagerado”.


“Ideologia” (rock, 1988) – Cazuza e Roberto Frejat

Às vésperas de entrar em estúdio para gravar o seu terceiro disco solo, Cazuza foi internado em Boston, nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento ao tratamento contra a Aids com a qual ele havia sido diagnosticado em 1987. É desse período a letra de “Ideologia”, que batiza o mais importante álbum da carreira do eterno exagerado.

Com melodia de Roberto Frejat, a composição é “sobre o que eu acreditava quando tinha 16, 17 anos, e como estou hoje. Eu achava que tinha mudado o mundo e que, dali para a frente, as coisas avançariam mais ainda. Não sabia que iria acontecer esse freio. É como se agora a gente tivesse que pagar a conta da festa”, nas palavras de Cazuza. A música foi regravada por Marina Lima, Paulo Ricardo, Sandra de Sá, entre vários outros.


“Brasil” (samba-rock, 1988) – Cazuza, Nilo Romero e George Israel

A partir de uma composição feita sob encomenda, Cazuza criou um dos hinos da música brasileira, e não apenas de sua geração. “Brasil” foi um pedido do cineasta Lael Rodrigues para a trilha sonora do filme “Rádio Pirata”, e surgiu exuberante na voz de Gal Costa na abertura da novela global “Vale Tudo”, em 1988. Cazuza e Gal a interpretaram em um dueto descontraído no especial da Rede Globo dedicado ao compositor.

A música é pródiga em imagens impactantes e encontra Cazuza na plenitude de sua criatividade. “Brasil é um deboche sem autocompaixão, em que eu peço à pátria que me conte todas as suas sacanagens, que eu não vou espalhar para ninguém. Os problemas do Brasil parecem os mesmos desde o descobrimento: renda concentrada, a maioria da população sem acesso a nada. O problema todo do Brasil é a classe dominante, mais nada”, disse Cazuza. Cássia Eller a regravou.


“O Tempo Não Para” (rock, 1988) – Cazuza e Arnaldo Brandão

Todas as músicas do espetáculo de lançamento do álbum “Ideologia” já estavam definidas quando Cazuza apresentou a Ney Matogrosso uma novidade. O antigo vocalista do grupo Secos e Molhados era o responsável pela direção, iluminação e cenografia do show. Amigos de longa data, Cazuza e Ney haviam sido namorados em meados da década de 1970.

Ao se deparar com a letra arrebatadora de “O Tempo Não Para”, Ney não teve dúvidas de que a música daria nome à turnê. Parceria com Arnaldo Brandão, “O Tempo Não Para” mescla a batalha pela vida de Cazuza com as agonias de um país em constante crise. “A música é sobre essa velharia que está aí e vai passar. Vão ficar as ideias de uma nova geração”, afirmou Cazuza. Ney, Simone e Elza Soares a regravaram.


“Blues da Piedade” (blues, 1988) – Cazuza e Roberto Frejat

A letra impiedosa e implacável de “Blues da Piedade” oferece uma espécie de paradoxo com o título dessa canção, lançada em 1988 no álbum “Ideologia”, e cantada por Cazuza em dueto com Sandra de Sá em show. Em outras palavras, Cazuza pede piedade a todos aqueles que são dignos de dó: “Agora eu vou cantar pros miseráveis/ Que vagam pelo mundo derrotados/ Pra essas sementes mal plantadas/ Que já nascem com cara de abortadas/ (…) Pra quem não sabe amar/ Fica esperando alguém que caiba no seu sonho/ Como varizes que vão aumentando/ Como insetos em volta da lâmpada”. Com metáforas poderosas, Cazuza enfia uma estaca no peito dos hipócritas e medíocres. Como era comum na parceria dos dois, Frejat criou a melodia depois de receber a letra de Cazuza.


“Faz Parte do Meu Show” (bossa nova, 1988) – Cazuza e Renato Ladeira

A formação musical de Cazuza tinha muito da música brasileira da Época de Ouro do Rádio, fonte de onde bebeu para maturar versos de dor de cotovelo adaptados ao espírito contestador que ele aprendeu com Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison e outros roqueiros norte-americanos. Do rol de ídolos nacionais, constava Dolores Duran, Maysa e Angela Maria, para quem compôs, em 1987, a rumba “Tapas na Cara”, bem ao estilo da intérprete.

Em 1988, Cazuza resolveu adentrar o universo da bossa nova, com “Faz Parte do Meu Show”, parceria com Renato Ladeira. A música seria revisitada por Cauby Peixoto, em uma gravação impagável em que ele aproveitava a deixa para relembrar os próprios sucessos que, afinal de contas, faziam parte de seu show.


“Um Trem Para as Estrelas” (MPB, 1988) – Cazuza e Gilberto Gil

Cazuza idolatrava Gilberto Gil desde antes de adentrar oficialmente o mundo da música. Na verdade, esse universo sempre esteve presente em sua vida. Filho de João Araújo, fundador e presidente da gravadora Som Livre, Cazuza se habituou a receber em sua casa nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão e toda a trupe dos Novos Baianos, como Moraes Moreira, Baby do Brasil e Pepeu Gomes. No disco “Ideologia”, Cazuza atingiu o auge da maturidade artística, e a parceria com Gilberto Gil dá uma das provas. “Um Trem Para as Estrelas” reflete sobre a realidade social do Brasil, ao mesmo tempo em que guarda espaço para as meditações de foro íntimo de Cazuza, um poeta peculiar.


“Preciso Dizer Que Te Amo” (balada, 1988) – Cazuza, Dé Palmeira e Bebel Gilberto

Interpretada por Cazuza no especial “Uma Prova de Amor”, exibido pela Rede Globo em 1989, a música teve o seu primeiro registro revelado no ano de 2004, quando o produtor Ezequiel Neves recuperou a fita cassete original. Lançada na coletânea “Preciso Dizer Que Te Amo”, a versão apresenta as vozes de Bebel Gilberto e Cazuza sob o acompanhamento do violão de Dé Palmeira. “E até o tempo passa arrastado/ Só pra eu ficar do teu lado”, sublinham os versos prenhes de paixão.

Inicialmente, o refrão dizia: “É que eu preciso dizer que te amo/ Desentalar esse osso da minha garganta”, mas Dé Palmeira o achou muito “punk”, e Cazuza substituiu a expressão por “te ganhar ou perder sem engano”. A canção recebeu inúmeras regravações, com diferentes arranjos, mas mantendo o poder de identificação entre os românticos e apaixonados. Marina Lima, Leo Jaime, Bebel Gilberto e Cássia Eller foram alguns dos que deram voz a essa balada.


“Burguesia” (rock, 1989) – Cazuza, Ezequiel Neves e George Israel

Urgência era a palavra de ordem na vida de Cazuza em 1989, já bastante fragilizado pela Aids. A música que deu título a seu derradeiro trabalho, um álbum duplo com 20 canções, foi definida pelo parceiro George Israel como “um verdadeiro tratado”. Já o outro compositor, Ezequiel Neves, produtor e companheiro inseparável de Cazuza, a definiu com seu humor ferino: “Quando Cazuza estava gravando ‘Burguesia’, eu falei: ‘Essa coisa está muito chata, você fala umas coisas que parece Titãs’. Faltava alguma coisa na letra e, de repente, eu tive essa tirada do ‘Enquanto houver burguesia/ Não vai haver poesia’, na qual depois os críticos caíram de pau”. Ácida, a letra traz momentos de autocrítica que são, no mínimo, inusitados e divertidos: “Pobre de mim que vim do seio da burguesia/ Sou rico, mas não sou mesquinho/ Eu também cheiro mal”.