Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda –, o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo.
Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, tais como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo.
Mas Chico Buarque foi e ainda é, por si só, um emblema, símbolo da qualidade musical, tanto em texto quanto em melodia. Não se considera um poeta, nem é preciso, as músicas o confirmam. Em 2022, ele lançou a sua mais nova música, em que é acompanhado pelo bandolim de Hamilton de Holanda: “Que Tal Um Samba?”.
“Pedro Pedreiro” (samba, 1965) – Chico Buarque
O primeiro álbum de Chico Buarque chegou às lojas, logo de saída, com uma “pedrada”. “Pedro pedreiro”, samba de 1965, já mostrava o pungente lirismo do compositor que contava então com apenas 20 anos. Nem tão moças, as meninas do “Quarteto em Cy” já estavam no quarto disco apenas naquele ano de 1966, um após o lançamento de Chico, entre acompanhamentos a Vinicius de Moraes, Baden Powell, e disco com versões inglesas. O encontro da poesia de Chico Buarque com as vozes harmônicas de Cyva, Cynara, Cybele e Cylene não poderia resultar em outra senão belos aplausos e sentimentos.
“A Banda” (marcha, 1966) – Chico Buarque
Em 1966, Nara Leão estourou em todo o país ao revelar um jovem compositor, até então desconhecido: Chico Buarque, autor da singela marcha “A Banda”. O sucesso foi tanto que a gravadora exigiu que Nara registrasse a música em seu próximo LP, mas ela já estava em outra. A cantora consentiu a seu modo, colocando a música ao lado de temas de forte apelo social, no LP “Manhã de Liberdade”. Com “A Banda”, Nara abocanhou o primeiro lugar no II Festival de Música Brasileira da TV Record, empatada com “Disparada”, de Geraldo Vandré, interpretada por Jair Rodrigues. A música ainda foi gravada por Chico.
“Sabiá” (bossa-nova, 1968) – Chico Buarque e Tom Jobim
O primeiro registro fonográfico do Quarteto em Cy aconteceu em 1963, na gravação da trilha sonora do filme “Sol sobre a lama”, de Alex Viany. Em 1968, Cybele e Cynara, como dupla, venceram o III Festival Internacional da Canção com a bossa-nova “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, mas sob vaias, já que o público em massa apoiava a politizada “Caminhando”, de Geraldo Vandré. Após inúmeros sucessos, formações, discos em homenagem a gêneros e compositores, o grupo gravou “Sabiá” no ano de 1997, em parceria com o MPB4, no álbum intitulado “Bate-Boca”. E está dado o recado. Aplausos!
“Apesar de Você” (samba, 1970) – Chico Buarque
Exilado na Itália, Chico Buarque retornou ao Brasil em 1970, após mais de um ano. Incentivado pelo dono de sua gravadora, André Midani, que garantia a melhora da situação, Chico se decepcionou ao constatar o verdadeiro cenário. Para expressar sua indignação e esperança compôs o samba “Apesar de Você”, no qual mandava recados diretos. “Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar”. Incrivelmente os censores não captaram a mensagem, e caíram na ladainha duma “briga de amantes”. Quando a canção estourou nas rádios, a população, bem mais esperta, a tomou em seus braços.
“Vai Trabalhar, Vagabundo!” (samba, 1973) – Chico Buarque
“Vai Trabalhar, Vagabundo!” foi composta por Chico Buarque a pedido de Hugo Carvana para o primeiro filme do ator como diretor, de título homônimo. A música trata o tema de forma irônica, em consonância com a película, que exalta o malandro, mote sempre repetido por Carvana. O autor da letra chega a comparar a labuta a “uma loucura”, e faz referência à gravata como um nó prestes a enforcar o protagonista. Lançada em 1973, a música só foi gravada em disco três anos mais tarde, pois, perseguido pela ditadura militar, Chico Buarque via-se impossibilitado de registrar suas canções em razão da censura.
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva...”, diz a mulher.
“Jorge Maravilha” (samba, 1973) – Chico Buarque
Perseguido pela censura Chico Buarque recorreu, em 1973, a um de seus truques. Ao criar o pseudônimo Julinho da Adelaide ele conseguiu incluir canções de sua autoria no álbum “Sinal fechado”, idealizado para ser composto apenas com músicas alheias. O show “O Banquete dos Mendigos” foi uma estratégia do irreverente Jards Macalé para “arrecadar doações” para si e homenagear os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma farpa no âmago da ditadura, em total dissonância com os propósitos do documento da ONU.
Participaram, entre outros, artistas como Jorge Mautner, Raul Seixas, Paulinho da Viola, Luiz Melodia e, claro, Chico Buarque. Transformada depois em álbum, Chico registrou na histórica apresentação o samba “Jorge Maravilha”, numa das mais irônicas cutucadas no regime, que atingia diretamente o seu ditador. Os versos “você não gosta de mim, mas a sua filha gosta”, eram o melhor do desprezo que Chico poderia oferecer a Ernesto Geisel, cuja filha era fã do compositor de olhos claros.
“Passaredo” (MPB, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Chico Buarque e Francis Hime compuseram, em 1976, uma ode aos pássaros brasileiros e, em última instância, à rica fauna do país. Interessante notar a influência indígena em muitas dessas nomenclaturas, como se observa, por exemplo, em uirapuru, saíra, inhambu, patativa, macuco, juriti, e muitos outros. Nesta letra repleta de lirismo, os autores não deixam de denunciar a presença destruidora do ser humano no contexto de preservação da natureza. “Toma cuidado/Que o homem vem aí”, alertam. A melodia segue, até esse instante, o ritmo do voo gracioso desses animais. Foi regravada por Adriana Calcanhotto.
“Cálice” (MPB, 1978) – Chico Buarque e Gilberto Gil
O tema religioso perpassa toda a estrutura da música “Cálice”. Composta numa Sexta-Feira da Paixão, a lembrança do martírio de Cristo inspirou Gilberto Gil a identificá-lo com a situação vivida pelos brasileiros no auge da ditadura militar. A melodia, também de memória sacra, acompanha os versos que falam da “bebida amarga”, a “força bruta”, o “monstro da lagoa” e “o grito desumano”. Todas essas imagens fortes seriam ainda coroadas com o refrão que mistura o sentido das palavras “cálice” e “cale-se”. O trauma da época levou Gilberto Gil a jamais regravar essa canção após a tentativa, censurada pelo regime militar, de apresentá-la em um show ao lado de Chico Buarque, naquele ano de 1978.
“Folhetim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Composta para a “Ópera do Malandro”, a belíssima “Folhetim” é uma das muitas músicas que sobreviveram ao espetáculo de Chico Buarque. Interpretada por Gal Costa no ano de 1978, na companhia de Wagner Tiso ao piano, Perinho Albuquerque, autor do arranjo, Jorginho Ferreira da Silva no saxofone, e outros músicos de peso, a canção narra a trajetória simples e peculiar de uma prostituta, com uma melodia ao mesmo tempo suave e incisiva, como requer a letra. “Se acaso me quiseres/ Sou dessas mulheres/ Que só dizem sim”. A música foi regravada por Nara Leão, Chico Buarque, etc.
“Pedaço de Mim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Nascida em São Paulo, Zizi iniciou a carreira há 45 anos, em 1978, com o lançamento do disco “Flor do Mal”, que trazia canções de Sueli Costa, João Bosco, Aldir Blanc, Ivan Lins e Caetano Veloso. No mesmo ano, Zizi participou do disco de Chico Buarque cantando a dolorida “Pedaço de Mim”, uma das mais bonitas canções sobre a saudade da música brasileira. Tímida e ainda em início de carreira, a cantora mal acreditou quando recebeu o convite. No ano seguinte, em 1979, a canção foi o carro-chefe e deu nome ao segundo álbum de Zizi. Além de “Pedaço de Mim”, outro destaque do lançamento foi uma versão para “Nunca”, samba-canção de Lupicínio Rodrigues que entrou para a novela da TV Globo.
“Geni e o Zepelim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Não é por injustiça que “Geni e o Zepelim” é uma das mais célebres canções brasileiras de todos os tempos, não limitada ao tema da prostituição e muito menos à peça em que está inscrita, a também lendária “Ópera do Malandro”. Mas é pelo que ela tem em si, a força dos versos, a inventividade da melodia, a métrica perfeita usada por Chico Buarque para abordar um tema religioso que toca na esfera pagã do homem. O episódio descrito na Bíblia das pedras jogadas em Madalena aparece em nova leitura. O desprezo da personagem ao representante máximo da burguesia, da destruição, e, sobretudo, da hipocrisia.
“O Meu Amor” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Há 40 anos, Elba Ramalho deu um “Banho de Cheiro” em todo o Brasil com o frevo de Carlos Fernando que embalou gerações e gerações de brasileiros. A música foi lançada no LP “Coração Brasileiro”, que vendeu mais de um milhão de cópias e arrebatou disco de ouro e platina. Sua estreia profissional, no entanto, foi como atriz, ao participar do filme “Morte e Vida Severina”, inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto, e da peça “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, em que interpretava a prostituta Lúcia e eternizou a música “O Meu Amor”, num dueto com Marieta Severo, em 1978.
“Feijoada Completa” (samba, 1978) – Chico Buarque
É com muita fome e a elegância habitual de suas canções que Chico Buarque, acompanhado de seu batalhão, pede para que a mulher bote água no feijão, jogue o paio, a carne seca e o toucinho, além de fritar os torremos, separar a laranja e a farofa e preparar a indispensável couve mineira. “Feijoada Completa”, samba de 1978, remonta às tradicionais e festivas feijoadas de domingo, aonde não falta boa comida e bebida, além da presença dos amigos. Aquela feijoada gostosa que cheira à distância é o prato principal da música de Chico, e não há nada melhor do que saboreá-la ouvindo os seus belos versos.
“Doze Anos” (samba, 1979) – Chico Buarque
Chico Buarque captura o momento de transição da infância para a adolescência, quando a ingenuidade dá, paulatinamente, espaço para a malícia, ainda insipiente, na música “Doze Anos”, composta para o musical “A Ópera do Malandro”, de 1979, e gravada em parceria com o nome maior do samba de breque brasileiro, Moreira da Silva. Mais uma vez o enfoque é o da nostalgia, como bem deflagram os primeiros versos: “Ai que saudades que eu tenho dos meus doze anos, que saudade ingrata…”. Daí por diante, percorremos, com o protagonista, os caminhos dessa criança que fora, “fazendo grandes planos, chutando lata, trocando figurinha (…), jogando muito botão (…) olhando fechadura, vendo mulher nua…”, entre peripécias mais.
“Eu Te Amo” (MPB, 1980) – Chico Buarque e Tom Jobim
Também ao lado de Tom Jobim, em outra parceria consagrada, Chico Buarque escreveu, em 1980, os versos para a música “Eu te amo”, incluída no rol dos maiores sucessos da MPB. A música serviu como trilha sonora para o filme de mesmo nome dirigido por Arnaldo Jabor um ano depois, protagonizado por Sônia Braga e Paulo César Peréio. Com sua habitual habilidade poética Chico conduz o ouvinte pelos meandros da relação a dois, em suas desavenças e reencontros, que tem no corpo o espaço em que se infiltra e explode, e combinou imagens de pura sensualidade a lamentos típicos da dor de cotovelo. “Se na bagunça do teu coração (…)/Teus seios inda estão nas minhas mãos…”.
“Bastidores” (samba-canção, 1980) – Chico Buarque
Chico Buarque escreveu “Bastidores”, inicialmente, para sua irmã Cristina gravar. Interpretada por Cauby Peixoto, tornou-se uma das pérolas mais elegantes de seu repertório. “Bastidores” visualiza o veludo da voz de Cauby quando ele retornava à mídia depois de um tempo afastado, em que seu estilo foi considerado ultrapassado. Em 1980, não apenas Chico, mas vários compositores da música brasileira, como Caetano Veloso, Eduardo Dussek e Joanna, dedicaram canções ao ídolo de gerações. “Bastidores” é o carro-chefe que transporta a espetacular voz de Cauby Peixoto, e com todas as suas joias.
“Pelas Tabelas” (samba, 1984) – Chico Buarque
Chico Buarque talvez tenha sido o primeiro a falar sobre bater panelas na canção brasileira. Certamente o de maior sucesso. No samba “Pelas tabelas”, de 1984, o alvo era certo, a ditadura e o crescente movimento pelas “Diretas Já”. Além disso a letra brincava com a troca e o engano das palavras entre si, como num jogo de esconde-esconde, um quebra-cabeça. Se naqueles anos o cenário político definia-se claramente entre direita e esquerda, pode-se dizer que houve o acréscimo de uma palheta de cores nos anos 2000.
É inegável, no entanto, que quem deseja articular a queda de uma presidente eleita democraticamente por descontentamento individual compactua com a ideia de golpe. O que ao Brasil trouxe, no passado, consequências trágicas e irreparáveis. Sigamos com Chico Buarque, ao menos na música, onde é craque. “Quando vi um bocado de gente descendo as favelas/Eu achei que era o povo que vinha pedir/(…)Minha cabeça de noite batendo panelas…”.
“Paratodos” (MPB, 1993) – Chico Buarque
Não há exemplo maior de riqueza e diversidade cultural do Brasil do que a música “Paratodos”, lançada no disco homônimo de Chico Buarque, em 1993. E não é por acaso. Chico carrega a herança desde o pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, que cunhou o controverso termo “homem cordial” para o brasileiro, mas é, sobretudo, por sua arte que o compositor se destaca nessa seara. Chico é capaz de reforçar a tradição sem perder o olhar para o contemporâneo. Se há no Brasil muitas culturas diferentes, é essa a sua maior riqueza: “O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano, meu maestro soberano, foi Antônio Brasileiro…”.