Três carretas repletas de dinheiro chegam ao Centro de Belo Horizonte escoltadas por viaturas e helicópteros e estacionam perto da igreja São José, entre Tamoios e Tupis. O quarteirão, sempre tumultuado por carros, ônibus e pedestres, para por alguns minutos sob os olhares de expectativa. A agência do Banco do Brasil na rua Rio de Janeiro recebia o primeiro carregamento de real, a nova moeda que prometia vencer a hiperinflação - a taxa fechara o ano de 1993 em corrosivos 2.500%.
Há exatos 30 anos, em 1º de julho de 1994, nascia o Real, a moeda que enfim estabilizaria a economia brasileira após a herança da ditadura militar e de planos fracassados dos
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“O Centro de BH parou no dia que chegou a primeira remessa para atender o Banco do Brasil, que era um dos pontos de distribuição para as outras agências. Se fosse hoje em dia, um PIX resolveria parte do problema”. A descrição é do bancário Antônio César Costa, de 66 anos. Funcionário do Banco Mercantil há mais de quatro décadas, Antônio recorda os olhares de desconfiança e ansiedade das pessoas prestes a receber a nova moeda.
Antônio é bancário trabalha em banco há mais de 40 anos, e se recorda com espanto dos planos econômicos que antecederam o real
O confisco da poupança em 1990, decretado pelo governo de Fernando Collor de Mello, provocou a falência de milhares de famílias e destruiu suas diminutas economias. Os
Moedas do Brasil:
- 1942 a 1967: Cruzeiro
- 1967 a 1970: Cruzeiro Novo
- 1970 a 1986: Cruzeiro
- 1986 a 1989: Cruzado
- 1989 a 1990: Cruzado Novo
- 1990 a 1993: Cruzeiro
- agosto de 1993 a junho de 1994: Cruzeiro Real
- 1º de julho de 1994: Real
“Era um período que ninguém tinha noção de valor. Você saia de casa para comprar uma camisa, um sapato ou um mantimento e não tinha noção de quanto ia pagar e se estava caro ou barato. Os preços giravam muito rápido, era uma velocidade assustadora”, recorda-se o bancário. “Hoje a gente tem uma taxa de juros de 10% ao ano, e naquela época vivia com taxa de 6.000%, 7000% ao ano”, compara.
Inflação acumulada
O efeito foi imediato: se em junho de 1994 a inflação foi de 47,73%, em julho, com o real, o índice desabou para 6,84%. Para se ter uma ideia, de dezembro de 1979 até o lançamento do Real, a inflação brasileira acumulada chegou a impressionantes 13 trilhões porcento (13.342.346.717.671,70%!), segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Como comparação,
Remarcação de preços
Entre os anos 1980 e 90, ficaram famosas as maquininhas de remarcar preços nos supermercados. Funcionava assim: com a inflação fora de controle, um produto começava o dia custando determinada quantia. Na hora do almoço, quem comprasse já pagava um valor maior, e quem deixasse para o fim da tarde só levava o produto se gastasse mais ainda.
Foto tirada em supermercado no dia 1º de julho de 1994, data de lançamento do real
“Era terrível. Foi um período em que todos acumulavam produtos. Você recebia o salário, corria para o supermercado e comprava tudo para o mês, porque seu salário perdia valor”, recorda.
Quem já trabalhava na época conta histórias parecidas sobre o tumulto que era fazer compras e pagamentos. Odilon Cardoso de Sousa, 67 anos, dono da Mercearia e Padaria Diniz há 37 anos no Cidade Jardim, na região Centro-Sul de BH, foi bancário antes de virar comerciante.
“Era uma loucura trabalhar em banco. Toda vez que entrava um plano econômico era exaustivo, a gente ficava até tarde da noite. O Plano Real provocou uma mudança radical, foi a salvação do Brasil. Porque a inflação era galopante”, afirma Odilon. Estocar produtos chegava a ser estratégia de investimento, já que nos dias seguintes era certo que o preço daquele item dispararia. Com isso, as prateleiras se esvaziavam rapidamente. “O lucro era certo. Muitas vezes era até difícil conseguir produtos, porque quem tinha dinheiro estocava (itens de consumo)”.
Odilon recorda o tempo em que as pessoas estocavam alimentos e outros produtos para evitar a corrosão do dinheiro da noite para o dia
O bancário Antônio César Costa lembra do fracasso dos planos Cruzado, Bresser e Verão, que congelaram preços e chegaram a funcionar nos primeiros dias. Semanas depois, no entanto, a falta de produtos e o descontrole das contas públicas levava novamente a inflação às alturas. Com o confisco da poupança no Plano Collor, a situação se agravou. No Plano Real, ele notou um otimismo generalizado. “A gente tinha uma esperança muito grande naquele governo e a estratégia de implementação do Plano Real não foi imposta, como o Plano Collor, que de um dia para o outro confiscou tudo. No Plano Real houve uma preparação da sociedade, foram explicando as medidas, a URV, até chegar à estabilidade esperada”, conta.
Overnight
Outra forma de evitar a corrosão do dinheiro era o chamado overnight, operação financeira de curtíssimo prazo que se tornou símbolo dos tempos hiperinflacionários. Funcionava assim: o correntista precisava ir ao banco diariamente e comprar títulos públicos pelo prazo de uma noite. No dia seguinte, vendia o título para impedir que o dinheiro parado perdesse valor. Segundo o Banco Central, em 1990 pouco mais de 10% da população brasileira tinha conta bancária (16,7 milhões de correntistas em uma população de 146 milhões). Atualmente, 86% dos brasileiros acima de 15 anos possuem conta em banco.
Professor emérito da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, ex-reitor da Universidade e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, o economista Clélio Campolina explica como os pobres eram mais impactados pela hiperinflação.
“Quem era mais pobre sofria mais. Alguns tinham acesso a aplicações financeiras com correção monetária, era o período do overnight. O saldo bancário do fim do dia era aplicado e corrigido pela inflação, e de manhã cedo o dinheiro era corrigido. Mas só quem tinha dinheiro podia fazer isso, quem não tinha dinheiro não conseguia remarcar”, explica.
“Isso aumentou muito a concentração de renda no Brasil, e até hoje o país tributa muito mal, porque tributa o consumo e não renda e patrimônio, como os países desenvolvidos”
Campolina classifica o período como trágico. “Vivi isso como professor da universidade. O dinheiro caía na conta e a gente ia correndo para o supermercado com uma lista de produtos do mês. A qualquer hora do dia havia um grupo enorme de funcionários remarcando preços, era uma fábrica de remarcação a qualquer hora do dia, de prateleira em prateleira. E longas filas nos caixas. Era uma tragédia”, lembra. “O Plano Real foi muito bem sucedido no combate à inflação. Era uma equipe muito qualificada e o plano se mostrou coerente, foi uma engenharia perfeita na adoção da URV. Quando o sistema se estabilizou, foi adotado o real”, pontua.
Em 1º de julho de 1994, quando o Plano Real foi lançado:
- O salário-mínimo era de R$ 70;
- Com uma nota de R$ 1, que até já saiu de circulação, era possível comprar dez pãezinhos de sal;
- O quilo do açúcar era vendido por R$ 0,68;
- O quilo do arroz era encontrado por R$ 0,82;
- O litro da gasolina custava R$ 0,55;
- A garrafa de 600 ml cerveja saía por R$ 1,16
- Um Big Mac com Coca-Cola no McDonald’s saía por R$ 3,22: eram R$ 2,42 do lanche e R$ 0,80 da bebida.
- Com a paridade com a moeda americana, R$ 1 real valia U$ 1 dólar entre 1994 e 1998; em outubro de 94, a moeda americana chegou a custar R$ 0,82
“Era interessante na época, porque todo mundo achava as notas muito bonitas. Brasileiro é assim. As notas eram diferentes e para a gente voltar troco a matemática era outra, né? Mudou tudo”. Joaquim Geraldo Teixeira, 56 anos, taxista há mais de três décadas e que vivia com ‘bolos de dinheiro’. “Antes do Real, você fazia muito dinheiro, mas não rendia nada. Com o Real melhorou muito. Peguei até um rapaz que ficava pedindo dinheiro no sinal. Na hora de ir para casa, pegava o táxi para subir o morro. A corrida dava R$ 7, ele pagava R$ 10 e me mandava ficar com o troco, porque não estava sabendo valorizar o real”, afirma.
“Antes do Real, você fazia muito dinheiro, mas não rendia nada”, conta o taxista Joaquim Teixeira
Para quem já nasceu sob o real é até difícil imaginar a economia do país daqueles dias. O vendedor de balas Wendel do Santos Silva, 23 anos, se assusta ao comparar o que se seria seu trabalho em um cenário de hiperinflação. “Eu teria que vender bala por R$ 1 em um dia, R$ 2 no outro e ninguém ia entender nada. Não tem como. Imagino como os trabalhadores ficavam”, alerta.
O nascimento do Real
O Plano Real foi concebido por economistas da PUC Rio a partir de teorias econômicas desenvolvidas nos anos 1980. André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan, Francisco Lopes e Winston Fritsch são considerados os pais da moeda que estabilizou o Brasil. Convocados por Fernando Henrique Cardoso, quarto ministro da Fazenda do governo Itamar Franco (1992-94), desenvolveram um plano de estabilização da economia que tinha como âncora a previsibilidade e a transparência na comunicação com o público. Nada de congelamento de preços, confisco de preços ou outras medidas que provocassem dúvidas e solavancos.
O real foi desenvolvido em três fases:
- A primeira, lançada em 1993, se chamava PAI, ou Plano de Ação Imediata, e funcionou como um ajuste fiscal para reorganizar as contas públicas. Previa corte de gastos, aumento de impostos, desvinculação de receitas e privatização de empresas públicas.
- A segunda foi a adoção de uma moeda ‘virtual’, a URV (Unidade Real de Valor). A partir de março de 1994, o brasileiros conviveram com duas moedas para estabilizar a economia: na prática, a moeda era o cruzeiro real, ressuscitado no governo Collor cortando três zeros dos cruzeiros; URV era uma unidade de conversão. Como os preços expressos em URV mantinham um valor constante, isso permitiu o alinhamento de preços, a melhora das expectativas e o controle da inflação.
- Enfim, em 1º de julho de 1994, a URV foi transformada em real. No primeiro dia, um real valia uma URV, ou CR$ 2.750. Também foi estabelecido um teto para a taxa de câmbio.
Fernando Henrique Cardoso, que já havia sido substituído no Ministério da Fazenda por Rubens Ricupero, se candidatou à Presidência pelo PSDB. Com a popularidade alavancada pelo real, FHC disputou com Lula (PT) e foi eleito presidente com 54% dos votos. A estabilidade monetária rendeu votos e garantiu o primeiro mandato ao tucano.