Nossa aventura de hoje tem sabor de crônica... Sim, aventura. Essa coluna, nosso encontro marcado de toda semana, é uma proposta, bem "à la Nietzsche”. Ele se declara em Zaratustra: cúmplice da Sabedoria, parceiro de dança com a vida, amante da eternidade. Aqui, fazemos “verso do avesso”. Cultivamos amizade com as boas ideias, fazemos “do viver” compasso, alma, calma. Em meio aos sequestros de um mundo que passa, apreciamos coisas que não passam. Assim o instante da rotina se torna Sagrado e Eterno...
Pois bem. Continuamente, pego a Br-381. Ela, é digamos assim, minha companheira diária, indo e vindo da Serra da Piedade a BH. Sim, os congestionamentos são constantes. Dá frio na barriga pegar essa rodovia. Escolhi, todavia, não amaldiçoar meu destino. Tomo, por ofício, o que indicativa Viktor Frankl: “quando a situação for boa, desfrute-a. Quando for ruim, transforme-a. Se não puder ser transformada, transforme-se”.
Tenho aprendido a amar e a apreciar a vida como ela é. Sabendo que, se não se pode realizar o que desejo, devo desejar o realizável. Assim, aproveito as horas no carro para realizar uma “fenomenologia do instante”. Minha surpresa, na noite de sábado para domingo, presenciei um milagre. Numa daquelas casas, à beira da estrada, em situações – me permita dizer – muito precárias, vi uma família, sentada em roda, sem celular, sorrindo e conversando...
Eu juro que olhei de novo. O trecho me permitia a redução da velocidade. Pessoas, num sábado, prestando atenção umas nas outras e não num celular, apenas em estado de “corpo presente”? Inacreditável”! De imediato me veio uma pergunta: o que fizemos com a mesa?
Sim, a mesa. Suprimimos os espaços de encontro e de encanto. Devorados pelas urgências do tempo, somos nós mesmos alimento, produtos de consumo no banquete dos algoritmos das Redes Sociais. Não, não sou dado a romantizações. Não, não tenho dúvidas de que nem sempre “antes era melhor”. Suspeito que seja uma ilusão pensar que nas famílias de antigamente nos víamos e nos percebíamos. Para muitos, nas dores da infância, a casa, a mesa, também foram palco de acordos cínicos. O “não dito”, que se ressentiu, se tornou “mal-dito”, não digerido...
Não romantizo as relações. Não tenho dúvidas de que no drama familiar também há lugar para odiar. Irmão, cunhada, sogra, parente, mesmo quando é bom, custa caro e dura. A gente convida para ir em casa, mas a lógica é simples: quem convida não quer, quem diz que vai, não acredita. E nessa guerra fria, tá tudo resolvido.
Até Jesus teve problemas com sua família. Quando volta de uma viagem para casa, seus parentes vieram para retê-lo, pois diziam: “ele está louco!” (Mc 3,21). Quando retorna a Nazaré num dia de sábado, ouvindo suas palavras, os seus próprios conterrâneos quiseram atirá-lo do alto de um monte (Lc 4,28).
Talvez a grande contribuição da família, em sendo a célula-mãe da sociedade, como lembrava o Papa João Paulo II, seja aprender a “odiar”. Sim, é isso mesmo! É na mesa de jantar que aprendemos que há um “outro”, para além do “eu”. Esse que é obstáculo à minha idealização. Esse, essa que pensa diferente, cujo olhar me solicita como aprovação ou limite, tendo direito de ser como lhe convém.
Sem esse atravessamento que nos causa “o outro”, sem a dor de amar, de perceber o próximo, bem junto a mim, tão distinto de mim, tão levemente diferente ao ponto de ser, por vezes, irritante, a gente se morde e devora (Gl 5,15). Lá onde não há rito, não há civilidade. Sem um “passa isso para mim”, “como foi o seu dia”, “não concordo”, “nossa, isso está uma delícia”, a gente não se escuta, quem não se escuta se distancia, quem se distancia, grita e se estranha...