Ouvindo...

Quem bebe vai para o céu?

A questão é: o que é devido a nós? O que devemos aos outros?

Padre Samuel Fidelis

‘Isso não é justo’. Tomada de assalto, essa é uma das frases que pode ser ouvida, de igual modo, nos lamentos de uma criança, nos corredores de um presídio ou em uma discussão de casal. Seja qual for o ‘canto’, todos nos sentimos, em algum momento e de algum modo, humilhados e ofendidos.

A vida é uma dívida constante. Não raro, ela não difere de um romance, uma suspeição de que o outro (ou a outra) tem mais, mas não mereceu, roubou de mim.

Os clássicos, que são os escritos que nunca param de dizer, como lembra Ítalo Calvino, seguem a tradição de Aristóteles, ao pensar a justiça. Entendem-na como a virtude em que se dá a cada um o que lhe é devido.

A questão é: o que é devido a nós? O que devemos aos outros? Quem será, entre os litígios que trazemos fora e dentro, como fantasmas de nossas frustrações, o juiz imparcial de nossas injustiças?

A justiça, a Nêmesis é cega. Não tanto quanto o amor, mas cega. Qualquer pessoa que se julgue ‘olho’ e porta-voz da justiça se desconhece. Quem se conhece, um pouquinho, não se leva a sério, sabe que todo mundo joga para baixo o número do manequim, e que, no geral, temos uma pálida (senão uma péssima) noção de quem somos.

Reside na letra da justiça a discordância, o equívoco, o interesse. É óbvio e ululante que o ‘direito’ quase sempre é sobre interesses, não sobre o que realmente é justo. Talvez seja por isso que, na tradição cristã, a justiça deve vir acompanhada de três outras ministras, damas de companhia: a prudência, a temperança e a fortaleza.

A fortaleza é imprescindível, pois a virtude só floresce em ambiente hostil. Do contrário, o que temos é exibição, cortesia. Sem constância, uma boa ação é um golpe de sorte, é um acidente em um dia festivo. Sem disposição permanente, hábito adquirido, não há virtude, mas teatro e bom-mocismo.

A temperança é imprescindível. A virtude, lembra o velho Aristóteles, está no meio. Se há excesso ou falta, não há ação virtuosa. Um agir justo é sempre proporcional, sólido, moderado, discreto.

Ah, a Prudência. A rainha das virtudes, como diziam os medievais. Toda ação boa deve sempre passar pelo crivo do quem, do como, do quando, do porquê, do ‘será que é para agora?’. O discernimento é filho da maturação com o tempo. Como lembra Dostoiévski: é possível ser sincero e continuar sendo um idiota.

Na dúvida, sobre se sua ação é justa ou não, aja com ‘energia masculina': durma e/ou tome antes uma cerveja.

A Bíblia diz que José é atravessado ao descobrir que sua ‘noiva’, Maria, estava grávida. Podendo julgá-la (José era justo!) escolhe abandoná-la em segredo, não quer ver o espetáculo do apedrejamento, não quer fazer a catarse da própria frustração do ‘não saber’, das suas desilusões, na jovem grávida (Mt 1, 18-25).

Ao dormir, José se abre aos sonhos, abre-se ao transcendente. Na incerteza, pranteia, dorme, sonha e é levado ao lugar onde as palavras se ausentam, onde a justiça encontra a paz e a verdade beija o amor (Sl 85,11).

Na dúvida sobre a sua medida, sobre a sua justiça, tome uma cerveja e durma. A justiça, na busca de ser imparcial, é também cega. Ela precisa, então, dormir, para ver melhor, precisa se abrir e sonhar.

Prudentes, temperantes, justos e fortes eram os medievais, que diziam: ‘Qui bibit, dormit; qui dormit, non peccat; qui non peccat, vadit in caelum. Ergo qui bibit, vadit in caelum’.

‘Quem bebe, dorme; quem dorme, não peca; quem não peca, vai para o céu. Portanto, quem bebe, vai para o céu’.

Ah, e por justo disclaimer, pelo amor de Deus, antes que me atirem justas pedras, vamos fazer um acordo mental: esse texto é uma ironia, uma reflexão sobre equilíbrio e não uma apologia à cerveja. Seja ‘justo’, com moderação.

Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.