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Enquanto a revitalização não vem: as estratégias do comércio do hipercentro de BH para vencer dificuldades e driblar as concorrências

Série especial da Itatiaia ouve especialistas, entidades, clientes e lojistas sobre os rumos do setor presente na região central

Parque Municipal Américo Renné Gianetti

A Belo Horizonte que foi projetada pelo Engenheiro Aarão Reis pulsava na década de 1950. Nela, começou a se formar o hipercentro com a construção e instalação de prédios, feiras de artes e artesanato de domingo, oferecendo roupas e comida; e o complexo do Palácio das Artes, junto ao Parque Municipal com uma lagoa e um pequeno parque de diversões. Nesse cenário foi sendo erguido também, pouco a pouco, o comércio de BH.

Aparecida de Fátima Rocha trabalha no centro de BH há quase 50 anos, em uma loja de roupas e lembra como tudo começou.

“Antigamente, a gente atendia 3/4 clientes de uma vez, era aquela correria pra lá e pra cá”, diz com saudosismo.

Ouça as três reportagens da série em versão de áudio, exibidas no Jornal da Itatiaia

Muito mais do que apenas a aquisição de mercadorias, tudo foi se transformando em oportunidades de emprego e também de abastecimento da população. O Centro, um bairro planejado, foi ganhando prédios e, com isso, sendo mais povoado. O comércio passou a reunir parte do patrimônio histórico e o consumo foi mudando. Ana Ribeiro, cuidadora de idosos, há 60 anos frequenta o Centro e diz que o preço, ainda atrai. “Atrai, os preços são melhores aqui”, avalia.

Para o presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL BH), Marcelo Souza e Silva, a pandemia provocou um isolamento do comércio, o fechamento de muitas lojas e até um certo desânimo na categoria. Mas, ele percebe que há recuperação e vê uma luz no fim do túnel.

“A região central de Belo Horizonte, especialmente o hipercentro, sempre foi o foco comercial da cidade. Ainda que nos dias atuais haja um esvaziamento da região, especialmente por conta da pandemia, ainda há muita força no comércio do hipercentro. Nós temos nessa região grandes redes de lojas, centenas de escritórios, com uma população local que movimenta o varejo”, diz Marcelo.

Os desafios, enfrentados por comerciantes da capital mineira são muito semelhantes aos vivenciados por lojistas de outras grandes cidades brasileiras, conforme avaliação do Marcelo.

“A sensação de segurança é mais fragilizada. A questão do morador em situação de rua e alguns problemas de mobilidade urbana são problemas, mas não são exclusivos de Belo Horizonte. Todas as capitais têm essas questões, é natural que esses problemas surjam”. Marcelo lembra, ainda, que a duas décadas a população era bem menor e a frota de veículos também. Para ele, isso tornava “as soluções mais fáceis”.

Estratégias: preço, comunicação e bom atendimento

Cerca de 280 mil pessoas passam pelo centro todos os dias. Em meio a tantos artifícios para chamar a atenção, Jéssica Cristina vende pela voz e divulga os preços com a ajuda do microfone.

“O pessoal está muito focado no celular. Então, a gente tem que procurar chamar a atenção pelo ouvido, né?”.

Agora, quem não tem microfone vai no “gogó” mesmo. Não era nem meio-dia quando o vendedor John Almeida já estava com a voz cansada. “Tem que ter muita voz, porque é osso”, desabafa.

Para ir em busca do cliente, vale chamar a atenção, mas o que garante a venda mesmo, segundo os clientes e comerciantes, é o bom atendimento, como reforça Ana Soares, vendedora de uma loja de produtos femininos. “Ter carisma, respeito e comunicação, é o que precisa.”

Gilberto Santana é vendedor de uma loja de calçados que tem 50 anos de funcionamento e conta que atendia clientes que só encontravam os produtos no centro da capital. Com o passar do tempo e com as novidades aparecendo, os shoppings foram conquistando clientes, os comércios locais foram ganhando força nos bairros e a compra virtual também bateu à porta do comércio do hipercentro.

“Hoje, você não precisa sair de casa para comprar. É onde que a gente sempre fala com a nossa equipe para receber seu cliente bem, porque ele quem ‘faz’ seu salário”, disse Gilberto. Segundo ele, as pessoas não precisam sair de casa para ir para o Centro, então, o colaborador precisa ficar atento ao bom atendimento para atrair os clientes. “O cliente precisa ser bem tratado, receber bem, é preciso oferecer coisas boas para ele”.

A questão do atendimento é endossada pelo presidente da CDL BH, Marcelo Souza e Silva. Para o consumidor, de acordo com ele, “atendimento de qualidade é mais importante que preço” e, por isso, "é fundamental que o comércio do Centro saiba conciliar a tradição com a inovação”. Segundo Marcelo, no mês de janeiro, por exemplo, a região tem uma boa movimentação com centenas de lojas promovendo liquidações e, para isso, aposta em um atendimento de qualidade, preços e condições especiais, além de outras comodidades.

Internet, descentralização e violência são desafios

Em meio a tantos problemas, a internet é concorrente de peso. José Cecílio é vendedor de uma sapataria tradicional de Belo Horizonte e conta o que muitos clientes têm feito.

“A pessoa vem aqui tirar foto do sapato, do tênis e compra pela internet”. Ele lembra que um problema tem contribuído para a queda nas vendas: a violência.

“Muito assalto, muito roubo, inclusive, no mês passado um senhor foi jogado no chão, machucou todo.”

Fausto César trabalha como vendedor de loteria e engrossa o coro sobre a violência.

“A rua está escura, à noite você não pode andar na rua, é meio perigoso, no sábado, domingo, não está fácil”, desabafa.

Dados divulgados pela Polícia Militar (PMMG) indicam que a região teve o maior número de ocorrências entre janeiro e julho de 2022, com 474. As câmeras do “Olho Vivo” vigiam a cidade e a PM diz que está presente, mas a violência ainda assusta, como reforça o jornalista Deuney, consumidor e morador do centro da capital.

“Antigamente, o centro era um lugar gostoso de se andar. Hoje não é mais. É questão de segurança, as nossas leis hoje não ajudam.”

Situação que faz com que o carreteiro Lauri Carvalho não tenha interesse em fazer compras no Centro da capital.

“Compra não faço nenhuma aqui. Vinha, em outras épocas, mas não venho mais há muito tempo”, revela.

Se por um lado há um problema com a violência, o desempenho das vendas do comércio varejista no Natal, por exemplo, foi considerado positivo. A Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas do estado de Minas Gerais destacou que o comércio em 2022 cresceu cerca de 6% frente a 2019, período antes da pandemia e 12% quando comparado com o Natal de 2021. Números que mostram que o comércio de rua tem força. Mas e se o centro passasse por uma revitalização? Sobre o assunto, a Itatiaia ouviu várias entidades e especialistas.

Revitalização

Washington Farjado, considerado um dos maiores urbanistas do Brasil, faz parte de um grupo de trabalho criado e anunciado pela prefeitura de BH, no ano passado, para traçar estratégias para um novo Centro. Ex-secretário municipal de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro ele traz, na bagagem, a requalificação do centro da capital fluminense.

Segundo ele, as cidades têm um papel fundamental para as iniciativas, para a indústria, para a economia, para os profissionais criativos, porque as cidades permitem a troca. Para o urbanista, “quanto mais essa troca, esse encontro puderem acontecer e em maior quantidade, em maior densidade, melhor”.

Da relação com políticos, empresários e sociedade parece estar nascendo um caminho para o novo centro. Para o jornalista e colunista social Paulo César Oliveira, o que precisa ser feito é justamente o que foi realizado no Rio e em tantas outras capitais brasileiras.

“O centro de qualquer cidade grande, vai se deteriorando, mas em BH não teve nada de novo, não procurou se fazer nada. Enquanto em Recife ficou uma maravilha, o próprio Rio de Janeiro, São Paulo, outras capitais, Belo Horizonte parou no tempo” diz ele.

E se nunca houve, segundo os especialistas, algo tão substancioso no hipercentro, ao menos o verbo “revitalizar” tem sido conjugado por lideranças da cidade. O prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman, tem discutido saídas para, como ele diz, tornar BH uma cidade mais feliz.

Recentemente, a Fiemg e a Câmara Municipal apresentaram propostas para o desenvolvimento de BH, com o pacote de medidas voltadas para a retomada do desenvolvimento industrial da capital. Entre as medidas divulgadas está a possibilidade de alterações nas regras da outorga onerosa do direito de construir, que estabelece o potencial construtivo de imóveis da cidade. Na prática, a diminuição desse potencial, prevista no plano diretor para vigorar a partir de fevereiro, reduz os investimentos na cidade, na avaliação dos industriais e, por isso, deve ser revista.

Flávio Roscoe, presidente da Fiemg, e Gabriel Azevedo, presidente da Câmara, apresentaram à prefeitura de Belo Horizonte um pacote de sugestões. “Você tem que aproveitar a infraestrutura que já existe. Você viabiliza grandes projetos de infraestrutura para uma região urbana com adensamento, e você reduz a circulação de pessoas numa grande área, reduzindo os problemas de tráfico e viabilizando obras como o metrô” explica Roscoe.

Nos últimos 30 anos, o metrô de BH não teve nenhum centímetro a mais de obra. Antônio Ataíde, vice-presidente da Associação Comercial de Minas Gerais (ACMinas), acredita que a ampliação dos trens urbanos da capital, agora com a privatização, pode dar um novo ar ao hipercentro.

“O que marca o declínio ou o progresso, a dinâmica econômica de sítios urbanos, é exatamente a mobilidade das pessoas. Em Belo Horizonte nós tivemos um encolhimento das atividades econômicas no hipercentro porque outros centros foram surgindo e nós, na realidade, não tivemos um sistema de malha urbana que valorizasse a confluência do centro”, defende Ataíde.

Paulo César Pedrosa, presidente do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de BH e Região Metropolitana (Sindibares), é um dos comerciantes mais antigos do hipercentro e sonha com duas questões fundamentais quando o assunto é a revitalização.

“Uma cidade iluminada à noite como, por exemplo, Curitiba e funcionamento de lojas, farmácias, bares, funcionando 24 horas. Claro que tem que haver uma segurança, um policiamento ostensivo”, sugere Paulo.

Traçar um plano de ações para revitalizar a área central da capital: calçadas mais limpas, por exemplo, que possa trazer de volta o ânimo de tanta gente que batalha para manter acesa a chama do comércio na capital, como é o caso da Aparecida de Fátima.

“Tem dia que a gente não tem nenhum ânimo para trabalhar. Eu é porque eu amo o que eu faço. Porque tudo que eu tenho na minha vida eu tirei daqui, então tem que você tem que trabalhar” diz ela.

Subir Bahia, descer Floresta, como diz o poeta, andar pela Rio de Janeiro, Curitiba, Caetés, ter um comércio forte, mas também um centro, inclusive, como um lugar para morar. Só os próximos capítulos da história de uma cidade que tem Belo Horizonte no nome vão poder dizer se isso vai se tornar realidade.

*Com informações do repórter Fabiano Frade e produção do Pablo Nogueira

Fabiano Frade é jornalista na Itatiaia e integra a equipe de Agro. Na emissora cobre também as pautas de cidades, economia, comportamento, mobilidade urbana, dentre outros temas. Já passou por várias rádios, TV’s, além de agências de notícias e produtoras de conteúdo.