Bacurau é uma ave noturna, de voo baixo e silencioso, que passa o dia camuflada no chão e enxerga muito bem no escuro. O nome do pássaro deu título de filme brasileiro premiado e, também, batiza o menor bairro de Belo Horizonte: um pedaço quase invisível no mapa, onde todo mundo se conhece pelo nome. O Bacurau fica no lado Norte de BH, mesma região onde está o Granja Werneck, maior bairro da capital, com 9,210 km2, tamanho 2,3 mil maior do que o Bacurau, que tem 0,004 km2.
Localizado às margens do Córrego Bacuraus, o menor bairro de BH fica entre Vila Clóris, Campo Alegre e Planalto e reúne uma quadra a quatro ruas — todas com nomes de pássaros: Rua dos Bacuraus, Rua dos Curiangos, Rua dos Periquitos e Beco dos Tucanos. Há somente um comércio: um bar, onde a calma impera. Neste ano, foram registrados apenas três Boletins de Ocorrências (BOs) no Bacurau.
A Itatiaia esteve no local onde vivem 64 moradores (IBGE, 2022), para a segunda reportagem da série especial '‘Capital dos extremos: a BH de 128 anos repleta de história e desafios’, que celebra os 128 anos da capital. O território, muito pequeno e marcado pela simplicidade e pela vida pacata, ganhou atenção nos últimos anos por um motivo inesperado.
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A vizinhança despertou curiosidade nas redes sociais após o lançamento do filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, que conta a história de moradores de um vilarejo fictício do sertão pernambucano que descobrem que a própria comunidade foi apagada das referências geográficas.
Mas, como conta Warlei Dias dos Santos, de 57 anos — que diz ser filho do primeiro habitante da região —, por ali o impacto foi praticamente nenhum. Segundo ele, a comunidade “não tem muito esse perfil de [assistir] Netflix, de filme, de cinema” e desconhece que algum tenha assistido ao filme.
Warlei explica que Bacurau é uma localidade formada majoritariamente por pessoas acima dos 40 anos, trabalhadoras e de rotina simples. “Muitas pessoas daqui são evangélicas e levam uma vida mais caseira”, acrescentou ele, que tem orgulho de onde mora com a companheira, Ester Mendes, de 56.
Como tudo começou no menor bairro
Warlei chegou lá com cerca de 6 ou 7 anos, no fim da década de 70. ''Aqui era um terreno esquecido. A gente achava que era da prefeitura, e meu pai entrou, cercou e nós nos tornamos os primeiros moradores’’, lembrou o pastor evangélico, que tem uma fábrica de uniformes no 2º andar do imóvel e trabalha como motoristas de aplicativo.
Seis meses após a chegada de Warlei, vieram outras famílias. O crescimento foi rápido e, no fim da década de 1990 e início dos anos 2000, a comunidade chegou a ter cerca de 130 casas improvisadas.
No lugar de extrema vulnerabilidade, o senso de comunidade brotou com força. Warlei lembra de ''Dona Regina’’, que morava atrás do orelhão (telefone público) e, carinhosamente, funcionava como a “telefonista” da região — atendia chamadas, repassava recados a qualquer hora da noite e, segundo ele, “chegava a formar fila”.
Morador do bairro Bacurau: Warlei Dias dos Santos, de 57 anos
O pastor também foi a primeira pessoa a ter um carro no local e usava o veículo para levar mães ao hospital para terem seus filhos. “E, depois, para enterrar esses filhos”, acrescentou o pastor, que lembra que mais de 40 jovens morreram nesse período em razão do tráfico de drogas.
No fim dos anos 2000, ocorreu a desapropriação da área. “Precisava passar uma avenida”, contou. Parte dos moradores foi realocada para prédios construídos pelo poder público, enquanto outros receberam dinheiro e se mudaram para outro lugar. Nesse processo, descobriu-se que parte do terreno era particular — o que impediu a remoção da casa onde Warlei vive desde criança, que ao longo do tempo passou de um barracão de lona para uma construção de tijolos, vivendo, hoje, na Rua dos Bacuraus, 560.
Bairro Bacurau, na Região Norte
Nova geração
Duas casas à frente, na Rua dos Bacuraus, 590, vive a família Wendell Galdino, de 38 anos, e a companheira Érica, Wenderson, de 13, Angel, de 5, Agatha, de 9, que chegaram no local em 2009, em uma realidade muito diferente de quando foi ocupada pela família de Warlei.
A região, que no início “era só mato”, hoje é bem arborizada, o que melhora a qualidade do ar, e está localizada entre shoppings e hipermercados, com fácil locomoção para qualquer ponto da cidade.
De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), quatro linhas (718, 719, S63 e S66) atendem à Rua dos Periquitos e deixam os moradores a poucos metros da Avenida Cristiano Machado, onde passam diversas linhas e o Move. “Adoro morar aqui. É perto de metrô, de ônibus. Não penso em mudar”, garantiu Wendell.
Bacurau, bairro na Região Norte de Belo Horizonte
Os residentes do Bacurau são atendidos no Centro de Saúde Campo Alegre, que fica na rua Beija-Flor. Já nas situações de urgência, os usuários podem receber assistência na UPA Norte, que fica na Avenida Risoleta Neves, no bairro Novo Aarão Reis.
As mudança com o tempo
O cenário de violência retratado nos anos 2000 pelo vizinho Warlei mudou por completo com o passar dos anos. “Problema? Bem poucos, quase nada”, disse Wendell. Os dados confirmam: não há registros da Guarda Civil Municipal no Bacurau. Já a Polícia Militar (PM), por meio do 13º Batalhão, contabilizou, em levantamento feito a pedido da reportagem, três ocorrências em 2025 (até 23 de novembro) — furto, estelionato e lesão corporal.
O sossego possibilita Wendell colocar uma rede entre as árvores na porta de casa. ''Meus filhos todos cresceram aqui. Perto da mata montamos uma rede. Meu filho sobe nas árvores pra ler livros”, disse, acrescentando que Wenderson, que brinca na rua e não tem acesso à celular. “Ah, é legal. É bom subir em árvore. Eu gosto. É uma prática que comecei a fazer com 10 anos”, contou.
No Bacurau não existe aquele grupo de WhatsApp comum em prédios residenciais com menos de 60 moradores: todo mundo se comunica “à moda antiga”, batendo à porta, avisando de boca em boca e contando uns com os outros. Wendell tem orgulho de criar os filhos ali, os “bacuralenses”, como ele mesmo responde quando alguém pergunta: “Quem nasce em Bacurau é o quê?”
O vizinho Warlei recebeu propostas de compra, mas agradeceu e disse que é ali que pretende permanecer: “Às vezes a gente é feliz e não sabe”.
Ainda conforme Warlei, desde a desapropriação, por de 2.000, Warlei aguarda o resultado do processo de usucapião da área. Ele acrescentou que toda documentação já foi entregue e está protocolado na Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel).
O maior bairro da capital
Há cerca de cinco quilômetros do menor bairro da cidade, começa o maior território da capital mineira: a Granja Werneck. Um bairro que quase não termina de tão vasto — equivalente a 1.290 campos de futebol. Na Granja Werneck, porém, são 6.991 pessoas que relatam uma realidade bem diferente em relação ao moradores do Bacurau.
Moradora do lugar há quase cinco anos, Luciana Nunes Santana, 45 anos, operadora de caixa, descreve o contraste de viver em um espaço tão grande que sofre com a falta do básico. “Eles chamam aqui de Ocupação Vitória. É realmente muito grande. Eu nem conheço o bairro todo, porque nunca andei por aí, já que não tem infraestrutura. Não tem esgoto, não tem asfalto, não tem água”, disse.
Bairro Granja Werneck, na Região Norte da capital
A energia elétrica, segundo ela, foi a única melhoria efetivamente implantada desde que chegou ao local. “As ruas são de terra, cheias de buracos. Quando chove, fica tudo alagado; quando está seco, é muita poeira”, contou.
A moradora afirma haver promessa de implantação da rede de água, mas diz que as obras ainda não chegaram à parte onde vive, o que obriga os residentes a recorrer a bairros vizinhos para acessar serviços essenciais. “Falaram que estão fazendo o cadastramento para colocar o padrão de água, mas até agora não fizeram. Não chegou onde eu moro. Falta posto de saúde, falta escola, falta tudo”, completou.
Na educação, o Granja Werneck é atendido pela Escola Municipal Sérgio Miranda, enquanto as crianças da Educação Infantil são encaminhadas à Casa Félix e à EMEI Lajedo. Na saúde, os moradores utilizam os centros de saúde Lajedo, MG-20 e Zilah Spósito, além da UPA Norte para casos de urgência. “No momento, está um pouco complicado, né? Também não temos calçamento e ainda há muitas coisas que precisam melhorar, como o transporte público”, disse a vizinha, Renata Oliveira dos Santos, de 28 anos.
Pouca urbanização
De acordo com a administração municipal, o bairro possui características semelhantes às da Serra do Curral, por concentrar a mata da Granja Werneck e o Parque da Izidora. A região tem pouca urbanização e não é atendida por linhas de transporte coletivo.
A história da cidade ajuda a explicar — embora não justifique — a falta de infraestrutura que ainda marca bairros da Região Norte. Segundo o Arquivo Público da capital, apesar de parte do território ter sido ocupada antes mesmo da construção de Belo Horizonte, a urbanização avançou de forma tardia: a infraestrutura básica só se consolidou entre as décadas de 80 e 90.
Em meio a esse desenvolvimento desigual, o Granja Werneck permaneceu por décadas praticamente intocado, formado por extensas áreas de mata, antigas fazendas e cursos d’água. Com o agravamento do déficit habitacional e a expansão da cidade para a regional Norte, sobretudo entre os anos 70 e 90, parte desse território começou a ser ocupado — porém sem planejamento urbano prévio.
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de BH sobre as reclamações e aguarda posicionamento.