Sem dúvida, uma das formas mais curiosas - e talvez mais engraçadas - de nomear ambientes “coletivos” é chamá-los de família. Há algo de profundamente curioso, ou diríamos até, em certo sentido, de uma apropriação quase selvagem, em atribuir esse nome a espaços nos quais as relações são regidas por conveniências, cujo foco é o lucro (ou, no mínimo, uma finalidade filantrópica).
Pois bem. Se, por um lado, empresas, repartições públicas e grupos de trabalho, em sentido estrito, não podem ser considerados famílias, por outro, é inegável que existem entre eles algumas semelhanças reveladoras.
À semelhança do que ocorre em uma família, a linha entre o amor e o ódio no ambiente de trabalho costuma ser extremamente tênue. Há muita identificação, projeção e transferência na relação com aqueles membros da “família” - ou da empresa - com quem mais nos custa conviver. Algo parecido com o que acontece no ensino fundamental: uma das formas mais eficazes de perceber se uma garota está apaixonada é observar justamente o garoto em quem ela mais “bate”, entre tapinhas, implicâncias e provocações.
Via de regra, tanto na família quanto na empresa, as relações de conveniência mostram-se bastante eficazes. Assim como ocorre no núcleo familiar, ao fim e ao cabo, qualquer CNPJ é movido por múltiplos interesses particulares. A exigência por metas costuma ser inversamente proporcional à importância do sobrenome e diretamente relacionada aos conchavos e aos afetos.
Do mesmo modo que em uma família, a cultura e os valores de uma empresa expõem um conjunto claro de sintomas. Com a proximidade das festas de fim de ano, uma das cenas mais aguardadas é a recepção dos “novos agregados”. É clássica a imagem das pequenas “facções” reunidas nos cantos da sala, observando com lupa os defeitos de quem acaba de chegar ao “clã”. Poucas coisas são tão satisfatórias para o grupo quanto a catarse dos próprios defeitos projetados nos recém-chegados. Assim, a chamada “cultura organizacional” costuma devorar, no café da manhã, qualquer entusiasmo ou sangue novo.
Nossos padrões, quase sempre, são muito altos - tanto nas empresas quanto nas famílias. Isso nos faz lembrar João Grilo, em O Auto da Compadecida: é tanta qualidade exigida para dar um emprego que não se conhece um patrão em condições de ser empregado.
Cabem, portanto, reflexões na família, na empresa e na repartição pública. Tudo o que se repete é sintoma. O que dizem sobre nós as mesmas dívidas, as mesmas confusões de fim de ano, os mesmos problemas de RH que insistem em retornar?
Já prevendo os encontros incoventinentes (consanguíneos e agregado), já “desfrutando” das festas “regadas” a três beijinhos e a xingamentos velados, serve-nos o conselho das Escrituras:
Não seja justo ou sábio demais. Para que arruinar-se? Não te excedas na maldade, mas também não te tornes insensato. Para que morrer de modo antecipado? (Ecl 7, 16-17)