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‘Adolescência’: o protagonista da série da Netflix é psicopata? Psicólogo analisa

A série original da Netflix assumiu o top 10 das mais vistas da semana na plataforma e levanta debate sobre masculinidade, redes sociais e misoginia

O que motiva um menino de 13 anos a esfaquear uma colega de sala até a morte? Há quem chame o protagonista da série “Adolescência”, Jamie — interpretado pelo estreante Owen Cooper — de psicopata. A obra original da Netflix assumiu o top 10 de séries mais vistas da semana na plataforma e suscitou várias discussões nas redes sociais e fora delas. Além da doença, que poderia motivar o comportamento do adolescente, muitas pessoas passaram a discutir o papel da família e da sociedade na criação de novos indivíduos.

O psicólogo Rafael Matias explica que a sociedade contemporânea tem uma tendência a patologizar comportamentos, buscando justificativas em transtornos mentais. Ele explicou que o termo psicopatia entrou em desuso na psiquiatria, sendo substituído por ‘transtorno de personalidade antissocial’. “Essa mudança ocorreu após o termo ‘psicopatia’ ser muito disseminado pelo cinema e novelas como sendo de pessoas criminosas que matam”, disse.

O transtorno de personalidade antissocial, no entanto, é caracterizado por falta de empatia, frieza e um comportamento calculista. “Quando a gente pensa no protagonista, percebemos diversos episódios de afeto por parte dele. Temos o momento que ele é preso, que ele vê o vídeo, que ele fala com os pais.”, ressalta Rafael.

Masculinidade

Para especialista, o motivo do crime é outro e mais comum: o resultado da forma como meninos são criados na nossa sociedade. “O comportamento de Jamie pode ser interpretado como resultado de uma estrutura machista e misógina”, explica Rafael.

Segundo ele, meninos têm mais dificuldade em expressar seu sofrimento emocional, devido às normas da masculinidade. “Aprendemos a ser homem e mulher através da constituição social”, disse. Além disso, conforme o especialista, o imaginário dos meninos em relação às meninas é frequentemente violento, agressivo e carregado de ódio.

Filmes, séries, livros, vídeos, programas de TV são elementos culturais que auxiliam na formação desse imaginário de superioridade masculina em relação às mulheres e, cada vez mais cedo, as crianças têm contato com esse repertório. As redes sociais atuam como um veículo de transmissão de informações, disseminando pensamentos e influenciando como os jovens aprendem e se posicionam.

O poder dos influenciadores

Um dos criadores e roteiristas da série, Jack Thorne, disse em uma entrevista que o personagem principal foi “doutrinado por vozes” como a de Andrew Tate, que se autoproclama um “influenciador misógino”. Tate acumula mais de 10 milhões de seguidores no X, onde defende a submissão feminina. Mesmo acusado de crimes graves, incluindo estupro, tráfico humano e formação de grupo criminoso voltado à exploração sexual de mulheres na Romênia, ele continua muito popular nas redes sociais.

E o que explica a popularidade de ideias disseminadas por influenciadores como Tate? Segundo Rafael Matias, as redes sociais são caracterizadas como as “novas tribos”, promovendo novas formas de relação, inclusão e exclusão, e onde as pessoas buscam identificação. “Essa dinâmica facilita a violência devido à falta de contato face a face, gerando menos empatia e a sensação de anonimato para os agressores”, disse.

Agressores podem demonstrar traços agressivos online por não estarem vendo a vítima diretamente: “Essa sensação de que o outro não me vê. Mas a rede social é uma comunidade. Várias pessoas estão vendo seus comportamentos e os seus atos.”, explica Matias.

De acordo com o psicólogo, apesar de existirem pesquisas demonstrando os efeitos danosos das redes sociais para crianças e adolescentes, o debate e a conscientização no Brasil ainda não atingem plenamente as escolas e os núcleos familiares.

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Conheça o protagonista da série ‘Adolescência’, da Netflix

Na série, a mãe de Jamie faz uma autoanálise de quais comportamentos ela poderia ter tido para impedir que o menino se tornasse um assassino. Ela relata que acreditava que o filho estava no lugar mais seguro que poderia estar; o próprio quarto, na casa dos pais. No entanto, ela descobre que era dentro desse espaço que ele tinha contato com ideias cada vez mais radicais sobre as relações, carregadas de ideias de subordinação das mulheres.

Na internet, qualquer informação está a um clique de distância e, sem supervisão, tornam-se componentes perigosos. “Os pais precisam e podem ter acesso aos conteúdos, fazendo o monitoramento do acesso de dados daquilo que o seu filho está consumindo e como ele está se posicionando nas redes e até delimitar as redes que ele deseja e delimitar o tempo de acesso”, afirma o psicólogo.

A família é importante, mas não só

Os primeiros a serem responsabilizados pelas más atitudes dos filhos são os pais. De fato, eles respondem por isso, já que é a família que convive diretamente com o papel social de ensinar e educar. “A família, por ser uma rede em uma instituição primária, provoca ensinamentos essenciais para a configuração daquele sujeito”, explica Matias.

As famílias tentam transformar os membros em “boas pessoas”. No entanto, segundo o psicólogo, é importante notar que a família não tem a total responsabilidade de transformar um indivíduo, e nenhuma educação familiar oferece uma garantia. A série apresenta como plano de fundo uma família relativamente bem estruturada — ou sem demonstrar problemas graves de abusos e violência — preocupados com o horário de dormir para acordar e ir à escola.

“A gente poderia pensar: se o Jamie viesse de uma família totalmente desestruturada, nós teríamos até um respaldo para atribuir isso à causa, sendo o que a gente às vezes tende a procurar, né? Como se existissem causas para que aquele sujeito fosse assim. E, no caso do Jamie, a gente vai perceber que as causas estão em uma estrutura ainda maior do que a família”, disse. “Não dá para colocar sobre a família a total missão e dever de transformar o sujeito num sujeito totalmente saudável”, acrescenta.

De acordo com Matias, “mesmo que você tente educar seus filhos fora dessa estrutura, sinto dizer: algo sempre irá escapar. Ninguém passa ileso pelos efeitos da cultura”, explica Rafael.

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Responsabilidade coletiva

O co-criador, escritor e ator de “Adolescência”, Stephen Graham, disse, em entrevista, que o que motivou a escrever a história não foi o mistério policial, mas, sim, o porquê do número de crimes desse tipo aumentar em todo o mundo. “Que sociedade é essa onde garotos estão esfaqueando garotas?”, perguntou Graham. Em seguida, ele cita o ditado “É preciso uma aldeia para criar uma criança” e dispara: “E se todos nós fossemos responsáveis? O sistema educacional, os pais, a comunidade, o governo”, disse o ator.

No Brasil, as escolas começaram há pouco tempo a proibir o uso do celular para promover conexões mais reais entre os alunos e mitigar os efeitos negativos das redes sociais. A legislação surge em resposta ao crescente debate — que gera grande preocupação a especialistas e à população — dos impactos negativos das redes no aprendizado, na concentração e na saúde mental dos jovens.

O psicólogo acredita que esse é o caminho: a discussão. “Precisamos nos conscientizar sobre os processos pelos quais as crianças e os adolescentes estão sendo explorados, e expostos com o consumo excessivo dessas redes. E enquanto sociedade, a gente precisa de, talvez, políticas públicas, regulamentação das redes, que as discussões em espaços de instituições cheguem nos núcleos familiares e nessas crianças”, finaliza o Rafael.

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.
Graduada em Jornalismo pela PUC Minas, é repórter da Itatiaia desde abril de 2023, na equipe de redes sociais. Já passou pela redação do jornal Estado de Minas e assessoria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tem experiência principalmente em vídeos, podcasts e reportagens multimídia.
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