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Primeiro disco de Gilberto Gil já trazia futuros clássicos da música brasileira

Lançado em 1967, ‘Louvação’ contou, além da faixa-título, com ‘Procissão’ e ‘Viramundo’, canções gravadas por Elis e Bethânia

Gilberto Gil gravou, em 1967, músicas como ‘Louvação’, ‘Procissão’ e ‘Viramundo’

A cinco dias de completar 25 anos, Gilberto Gil lançou, em 1967, o seu primeiro LP, batizado “Louvação”, faixa-título que abre os trabalhos com tons orquestrais, antes que o violão do protagonista tome a cena.

Parceria com o poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972), a música foi apresentada para todo o Brasil num dueto explosivo de Elis Regina e Jair Rodrigues, durante o programa “Dois na Bossa”, comandado pela dupla na TV Record, em 1966.

Como sugere o título, a canção se inspira nas típicas manifestações religiosas do interior do Brasil, às quais insere um balanço próprio, bebendo na água da fonte de ritmos nordestinos, em especial o baião, para compor a sua gênese rítmica.

Na sequência, “Beira-Mar”, dobradinha com Caetano Veloso, nos põe em contato com uma canção de clima praieiro, como as melhores de Dorival Caymmi (1914-2008), e que nos revela um frescor desse primeiro álbum de Gil próprio da juventude, afinal de contas, ali ele iniciava a sua carreira profissional na MPB. O arranjo é do herdeiro de Dorival, o sofisticado e exigente Dori Caymmi, que amplifica o peso desta homenagem à Bahia.

“Lunik 9”, cujo título alude à nave russa lançada ao espaço, introduz preceitos da estética tropicalista, e surge como uma espécie de revista bradada aos quatro cantos por Gil, que encarna o menino daqueles antigos pregões de esquina, no entremeio de lirismo e um realismo duro, explicitado pela recitação de certos versos, o que produz essa ponte entre passado e futuro, tradição e modernidade. A faixa também ganhou a voz de Elis, em 1966.

Já “Ensaio Geral” é um autêntico samba de Carnaval que eterniza versos esfuziantes e libertários, a bordo de seu ritmo irresistível, enquanto “Maria (Me Perdoe, Maria)” envereda pelo caminho da valsa e do samba-canção, com tristeza, dolência e melancolia.

Esta é mais uma música de fim-de-caso, que também lembra a estética de Caymmi, em números como a clássica “Marina”, hoje tornada ultrapassada pelo discurso machista, mas cuja beleza permanece.

“A Rua” traz nova colaboração com Torquato Neto e mantém o álbum nesse lugar de marasmo e reflexão. O arranjo é um dos mais impressionantes do disco, sabendo flexionar e distender as intenções variáveis da letra, ao modo das artes dobráveis da revolucionária Lygia Clark (1920-1988).

“Roda” chama à baila João Augusto na parceria. Este é um samba ritmado, cheio de críticas sociais. A música foi gravada por Elis Regina, em registro que dispensa observações. Elis, quando tomava uma música para si, fazia misérias. O violão, a bem dizer, “invocado” de Gil, se destaca na interpretação do compositor.

“Rancho da Rosa Encarnada” é uma marcha-rancho que se impõe pelo tom exuberante, imperativo, em novo olhar de retrovisor do artista, que renova a história sem excluí-la. E o faz por meio do arranjo inquieto, à moda tropicalista. Ainda que preze pela tradição, inclui novidades que não passam despercebidas, nessa parceria tripla de Gil, Torquato Neto e Geraldo Vandré.

A faixa-seguinte, “Viramundo”, convoca a poesia de Capinam. Depois de substituir Nara Leão no aclamado espetáculo “Opinião”, Maria Bethânia participou de outra montagem de destaque.

Com direção de Augusto Boal, “Arena Canta Bahia”, de 1965, ainda contava no elenco com os conterrâneos Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, o irmão Caetano Veloso e o carioca Jards Macalé.

Naquele palco, Bethânia deu voz, pela primeira vez, ao baião “Viramundo”, e apresentou ao Brasil o talento de Capinam, letrista da melodia feita por Gil. A canção é, sobretudo, um manifesto de resistência e foi regravada por Gil e Elis.

Aqui, a referência musical é ao legado de Luiz Gonzaga, continuado por nomes como Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, artífices da chamada canção de protesto que dominou a MPB em certo período.

“Mancada” se nutre do samba sincopado, ao estilo de Geraldo Pereira, daqueles que João Gilberto adorava regravar, com um ritmo cadenciado propício para as artimanhas do violão de Gil, e letra sobre desfeita amorosa.

“Água de Meninos”, nova parceria com Capinam, emerge com todo o saudosismo de uma Bahia idílica, quase imaterial. A poesia se sobressai pela complexidade atribuída à geografia, retirando e ultrapassando o sentido primário. A música altera o ritmo tristonho para a exaltação a partir da segunda parte. E depois retorna a ele, nesse movimento que conduz todo o álbum.

Outra faixa significativa do disco é a derradeira “Procissão”, parceria de Gil com o performático Edy Star, que só passou a ter o nome creditado na música e a receber pelos direitos autorais em 2006, quase 40 anos após o lançamento.

Apesar do imbróglio, Edy superou a mágoa. “O Gil tinha só o refrão da música, numa festa mostrei a letra, e ele viu que encaixava direitinho na melodia. Na época fiquei ofendido pelo meu nome não aparecer, agora já está tudo resolvido”, salienta.

Encerrando o ciclo do LP, “Procissão” arredonda o álbum como se voltasse ao começo, pois, à maneira de “Louvação”, coloca na mesa o tema da manifestação popular e religiosa, e se converteu em sucesso imediato de Gil.

A versão do LP disponibilizada nas plataformas digitais conta hoje com duas faixas bônus: “Minha Senhora”, de rara sensibilidade, quase em forma de prece, evidenciando o lado espiritualizado de Gil; e “A Moreninha”, quando o artista assume o papel de intérprete da música de Tom Zé, uma genuína valsa tropicalista. Esse primeiro disco de Gilberto Gil é joia rara. Vale a pena reouvir.