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Grande Prêmio do Cinema Brasileiro dá estatueta internacional a ‘Argentina, 1985'

Estrelado por Ricardo Darín, filme aborda julgamento que levou para a cadeia os generais que comandaram o regime militar

Filme ‘Argentina, 1985', tem Ricardo Darín no papel do promotor argentino Julio Strassera

Uma das premiações mais aguardadas do ano, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, promovido pela Academia Brasileira de Cinema, anunciou, na noite desta quarta (23), os vencedores de sua mais recente edição. A cerimônia foi realizada na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.

O grande laureado da noite foi o mineiro “Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins, da produtora Filmes de Plástico, de Contagem, que tem despertado a atenção do cinema nacional nos últimos anos. O longa-metragem, que conta com uma inusitada participação especial do ex-jogador Sorín no elenco, foi o principal ganhador da edição.

Dira Paes foi eleita a melhor atriz graças à atuação em “Pureza”, enquanto Adriana Esteves ficou com a de melhor atriz coadjuvante por “Medida Provisória”. No plano internacional, “Argentina, 1985" saiu como melhor filme ibero-americano.

Maior grife do cinema argentino nos últimos tempos, Ricardo Darín estrela, mais uma vez, aquele que foi o representante do nosso vizinho sul-americano indicado ao último Oscar. Como se sabe, a ditadura não é uma questão para o povo argentino, que enfrentou o tema de uma maneira bem diversa do brasileiro.

Esse, talvez, seja o principal interesse da película dirigida por Santiago Mitre, que também assina o roteiro com Mariano Llinás. O longa toma como ponto de partida o papel do promotor argentino Julio Strassera, vivido por Darín, no processo que culminou com a condenação de generais envolvidos nos sangrentos crimes praticados nos sete longos anos que a ditadura militar perdurou no país.

Ao lado de Luís Moreno Ocampo (Peter Lanzani) e de uma equipe de jovens destemidos, a que se acrescenta um veterano advogado que se divide entre a profissão e o teatro, cabe a Strassera comandar uma operação delicada, logo após a redemocratização.

Parte do conhecido corporativismo dos militares é acionado quando eles se recusam a serem julgados por um tribunal civil, não lhe reconhecendo a legitimidade. O Superior Tribunal Militar decide que eles não cometeram crime algum.

Ou seja, embora o povo tenha retomado o poder, ainda há algo de podre no ar, com a influência indireta dos militares na política. E é esse nó que os juízes civis pretendem desfazer, quando decidem julgá-los.

Ao contrário da anistia geral, ampla e irrestrita oferecida pelo governo brasileiro aos agentes do regime militar, o Estado argentino, amparado e se equilibrando sobre um povo dividido entre uma classe média reacionária e uma população mais politizada, decide oferecer justiça.

A dificuldade da empreitada não é uma condição que os fará se render à iniquidade. Strassera, logo de cara, hesita, teme estar sendo usado como joguete na mão de políticos experientes, e se define como um sujeito comum, daqueles incapazes de modificar a História. Suas palavras serão desmentidas pelas próprias ações. Ele é encorajado pela família, em especial o filho caçula e a esposa, a se comprometer e lutar. E vai...

“Argentina, 1985”, começa dois anos antes, em 1983. O desfecho do processo ocorrerá no período que intitula o filme. São os depoimentos dos sobreviventes, sujeitados a torturas cruéis, vis, torpes, que lhes tiram toda humanidade e dignidade, que acabam por comover até aqueles que se colocavam ao lado dos militares.

Sob as vestes de generais, eles se revelam como seres desprezíveis, covardes e ferozes. As palavras de Strassera em sua peça de acusação têm, diante do horror, a capacidade de lavar a alma daqueles que lutam contra a ditadura: “O sadismo não é uma ideologia política, mas uma deformação moral”. E, aqui, cabe outro paralelo fundamental com nosso Brasil.

Eleito em 2018 e derrotado por Lula em 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu o gosto e a admiração pelo regime militar, mais especificamente pela tortura. Em 2016, durante a cassação de Dilma Rousseff, ofereceu o voto à memória de Ustra, o torturador da ex-presidente. Noutra ocasião, homenageou o ditador paraguaio Alfredo Stroessner, um conhecido pedófilo.

Em “Argentina, 1985”, há relatos chocantes de estupros de grávidas. Sem falar na presença contundente das mães da Praça de Maio, que tiveram seus bebês sequestrados e entregues a famílias de militares e de torturadores. No Brasil, a primeira iniciativa de justiça às vítimas só partiu de Dilma Rousseff.

Guerrilheira durante o regime militar, ela decidiu instaurar a Comissão da Verdade, que deveria investigar os crimes praticados pelo Estado brasileiro contra seus cidadãos naquele período de exceção. Bastou para despertar a ira de militares das mais diversas patentes e seus herdeiros, que não queriam ver a memória dos pais e avós ligada a crimes hediondos e nefastos, como estupro e tortura, embora eles tivessem praticado tais atos.

Numa das passagens mais impressionantes de “Argentina, 1985”, uma mulher torturada conta que, numa noite de bebedeira, os soldados resolveram espancar e estuprar um preso político apenas por diversão. Nem havia a intenção de retirar dele qualquer informação. Enquanto retiravam a humanidade do outro, perdiam a sua própria.

Ou, talvez, devamos nos conformar com o fato de que “a barbárie tem rosto humano”, como gostava de repetir Antônio Abujamra em seu programa “Provocações”, citando um autor eslavo. Já o escritor uruguaio Eduardo Galeano, que pesquisou as ditaduras latinas financiadas pelo Estado norte-americano, amenizava essa condição monstruosa.

“O torturador é um funcionário. O ditador é um funcionário. Burocratas armados, que perdem seu emprego se não forem eficientes. Isso, e nada mais que isso. Não são monstros extraordinários. Não vamos dar essa grandeza de presente a eles”, escreveu. Seja como for, a naturalização da tortura – cuja essência é extrair dor do corpo humano, de alguém – torna mais ralo aquilo que chamamos alma.