O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada. Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” e “Aprendiz de Feiticeiro”.
Comemorado no Brasil no dia 22 de agosto, o folclore inspirou muitos compositores nacionais, que adaptaram temas populares e reviveram lendas como as da Cuca e do Saci Pererê com o brilho e a força da música popular brasileira.
“Urubu Malandro” (folclore, 1914) – Braguinha
A partir de um tema folclórico da região norte do Rio de Janeiro, Braguinha criou a letra da música “Urubu Malandro”, gravada pela primeira vez em 1914, apenas instrumental. O Flamengo adotou o urubu como mascote em 1969, quando um torcedor soltou o animal no Maracanã com uma bandeira da agremiação presa aos pés. Time mais popular do Rio, o Flamengo tinha em sua massa uma grande presença de torcedores negros, o que levava as torcidas adversárias a chamarem-nos de urubus, em uma demonstração do racismo estrutural do país.
“Curupira” (folclore, 1936) – Waldemar Henrique
Os cabelos de fogo e os pés voltados para trás são as principais características do Curupira, um dos principais personagens do folclore nacional. Em 1936, esse ser que atemoriza caçadores e desmatadores da floresta foi tema da música de mesmo nome composta por Waldemar Henrique, músico versado em canções amazônicas. “Curupira” recebeu um registro posterior da cantora e compositora Inezita Barroso, interessada nas raízes e nas origens do Brasil, que a celebrizou em todo o país. A versão de Inezita chegou ao disco no ano de 1951 e gozou de sucesso entre os ouvintes da artista.
“Meu Limão, Meu Limoeiro” (samba-sertanejo, 1937) – tema popular
Mistérios rondam a origem de “Meu Limão, Meu Limoeiro”, como é da natureza dos temas populares. Mas é impossível negar seu sucesso através do tempo. Aproveitada pelo pernambucano José Carlos Burle, essa canção folclórica alcançou sucesso radiofônico pela primeira vez em 1937, com as vozes seresteiras de Jorge Fernandes e Sílvio Caldas, o “Caboclinho Querido”.
Na ocasião, aparecia a indicação “folclore recolhido na Bahia por Cardoso de Menezes e Francisco Pereira” no selo do disco, mas há indícios de que a música já era conhecida na Europa, em países como Alemanha e Holanda.
Existe a teoria de que os holandeses a teriam trazido para o Nordeste brasileiro. Decorridas duas décadas, Inezita Barroso a resgatou com êxito parecido, em 1957, e a colocou, definitivamente, em seu repertório. Mas foi a gravação de Wilson Simonal, em 1966, por sugestão do jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que a alçou ao posto de clássico.
“A Lenda do Abaeté” (canção praieira, 1948) – Dorival Caymmi
Dorival Caymmi aprendeu em Salvador a ilustração, ao trabalhar em jornais. Aprendeu a música, ao ganhar em 1936 um concurso de carnaval. E aprendeu a vender seu peixe e ler as lendas do seu povoado. “A Lenda do Abaeté”, de 1948, reproduz o clima sombrio e tenebroso de mais uma canção praieira. Como é do feitio das composições de Caymmi, aos poucos a escuridão ilumina-se em sua beleza que se esconde detrás de espinhais folclóricos. E os corais revelam o que o olho teme enxergar. Produz impacto tão forte que é preciso coragem para se chegar lá. Um brilho ostensivo que encanta, admira e assusta. É ter inocência de criança, e ver quanto linda a lagoa é.
“Sapo Cururu” (folclore, 1972) – adaptação de Jorge Mautner
O disco de estreia de Ana Cañas já delineava a temperatura elevada da personalidade da artista. Paulistana formada em Artes Cênicas pela USP, a cantora aliava suas qualidades performáticas a um texto com mensagens bem direcionadas. Em “Amor e Caos”, ela dá voz a músicas de Caetano Veloso, Bob Dylan e Jorge Mautner, em faixa com a participação do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, um dos maiores craques do gênero. Trata-se de “Super Mulher”, balada com influências indianas lançadas por Mautner em 1972, no disco “Para Iluminar a Cidade”, que deu o pontapé oficial em sua carreira no mercado fonográfico. No repertório, ainda constava as irreverentes “Quero Ser Locomotiva” e “Sapo Cururu”, folclore com arranjo de Jorge Mautner.
“O Vira” (MPB, 1973) – Luhli e João Ricardo
Antes mesmo de iniciar parceria de enorme sucesso com a cantora, compositora e instrumentista Lucina, a carioca Luhli conheceu duas figuras que mudariam sua trajetória artística: o português João Ricardo e o pantaneiro, como o próprio nome artístico dizia, Ney Matogrosso. Juntos eles foram parte de uma das bandas mais expressivas do Brasil, especialmente em tempos de ditadura militar, responsáveis por provocar e escandalizar o regime com vestes, maquiagens e movimentos corporais que os transformavam em figuras híbridas em cima do palco. Tais gestos, porém, não teriam o mesmo impacto se não estivessem acompanhados de frases tão ou mais emblemáticas. É o caso da música “O Vira”, que aludia ao universo mágico e fantástico em 1973.
“Matita Perê” (folclore, 1973) – Tom Jobim e Paulo César Pinheiro
O ritual se repete toda manhã. Paulo César Pinheiro toma café, lê os jornais e, sentado diante da mesa, coloca sobre ela folhas em branco, à espera da inspiração que inevitavelmente sempre vem, pelo menos há mais de cinco décadas, quando ele compôs o primeiro verso, com 13 anos. “Eu me lembro de não saber o que estava acontecendo comigo, fiquei agoniado, nervoso, então eu vi um papel e um lápis, e depois que escrevi foi que me acalmei e consegui dormir”, conta o poeta, letrista, melodista, dramaturgo e cantor, entre outras habilidades que um dos mais prolíficos artistas brasileiros da atualidade vez ou outra explora. Entre as parcerias de vulto está “Matita Perê”, feita com o maestro Tom Jobim, em 1973.
“O Mar Serenou” (samba, 1975) – Candeia
O manto azul e branco da Portela ilumina os passos da mineira guerreira, filha de Oxum com Iansã. Clara Nunes foi cantada em verso e prosa por João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, com quem viveu um matrimônio cheio de amor e música. Mas, principalmente, cantou o Brasil e suas raízes africanas, com samba no pé e, eventualmente, dores no coração. Mineira de Caetanópolis, no interior do Estado, Clara Nunes encantou todo o Brasil com o brilho de sua voz e a exuberância de sua personalidade, que ela adornava com amuletos e patuás. Sempre vestida de branco, Clara foi a expressão de um Brasil profundo, orgulhoso de suas origens. Em 1975, Clara lançou “O Mar Serenou”, samba de Candeia que poetiza o folclore da sereia.
“Calix Bento” (folia de reis, 1976) – Tavinho Moura
Entre trilhas sonoras, títulos da discografia-solo e outros em parceria, o músico Tavinho Moura contabiliza 18 álbuns na carreira, sem contar as participações. Mineiro de Juiz de Fora, ele recolheu, em 1976, a música de domínio público “Calix Bento”, oriunda da folia de reis, que ele adaptou para ser lançada naquele ano por Milton Nascimento, com enorme repercussão. Outra gravação de sucesso para a mesma música foi a da dupla caipira Pena Branca & Xavantinho. A canção desperta o histórico barroco e colonial das Minas Gerais.
“Querelas do Brasil” (samba, 1978) – Aldir Blanc e Maurício Tapajós
O fato de achincalhar Tom Jobim, João Gilberto, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Cartola, Clara Nunes, Elza Soares, Belchior, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso valeu a José Ramos Tinhorão uma “homenagem”. Em 1978, ele foi cantado por Elis Regina na música “Querelas do Brasil”, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, num verso onde era colocado ao lado de duas espécies de cobras: urutu e sucuri. A letra foi uma resposta de Aldir Blanc a um artigo de Tinhorão, intitulado “O Melhor de João Bosco é Aldir Blanc”, em que defenestrava o violonista de Ponte Nova. Blanc tomou as dores e saiu em defesa de seu parceiro. “Querelas do Brasil” é uma queixa diante da americanização cultural do país e subverte a premissa de “Aquarela do Brasil”.
“Bicho de 7 Cabeças” (MPB, 1979) – Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha
No final da década de 1970, o pernambucano Geraldo Azevedo lançou a música “Bicho de 7 cabeças”, de sua autoria com o paraibano Zé Ramalho e Renato Rocha. Desde o início da década, a música brasileira sofria uma oxigenação com as criações que vinham do nordeste do país. Essa canção insurge de forma tão vigorosa que recebeu inúmeras regravações em diferentes períodos, sempre mantendo o poder de impacto provenientes de sua melodia e letra. Nesta obra, os ditados transcritos são aqueles que emergem dos momentos de raiva, desacordo, com o intuito de expressar exagero e inconsequência. Por isso o clima não poderia ser outro. “Não tem pé, nem cabeça” e “Bicho de 7 cabeças” aparecem no decorrer desta simbólica peça.
“Cuca” (MPB, 1982) – Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo
Angela Ro Ro encarnou uma das personagens mais conhecidas do folclore nacional no especial de TV da Globo, “Pirlimpimpim”, levado ao ar em 1982. A cantora de voz rouca e grave interpretou todos os trejeitos da famosa Cuca do Sítio do Pica-Pau Amarelo criada por Monteiro Lobato, uma bruxa que tem a forma animal de um jacaré, inclusive a estridente risada. A canção feita para a personagem ficou a cargo do trio Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo. A mesma personagem foi vivida por Cássia Eller. “Olha a minha fuça/Olha que boneca/Não existe bruxa/Mais charmosa”, canta Ro Ro.
“Mistérios da Meia-Noite” (MPB, 1985) – Zé Ramalho
O interesse de Zé Ramalho por forças ocultas e sobrenaturais e o misticismo que envolve grande parte de sua obra recebeu uma atenção especial em seu segundo disco de carreira. Além do batismo, “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”, ainda trazia na capa a atriz Xuxa Lopes no papel de vampira que tenta Deus e o personagem Zé do Caixão, vivido por José Mojica Marins, como diabo. O artista plástico Hélio Oiticica também comparecia no encarte do disco. Faixas como “Pelo Vinho e Pelo Pão” e “Jardim das Acácias”, com participação de Pepeu Gomes, retomavam essas temáticas espirituais e religiosas. Mas nenhuma é tão tenebrosa quanto a lancinante “Mistérios da Meia-Noite”, que, em 1985, tornou-se trilha-sonora da novela “Roque Santeiro”, da Rede Globo.
“Saci” (MPB, 1993) – Guinga e Paulo César Pinheiro
A principal e mais conhecida lenda do folclore brasileiro inspirou uma música da parceria entre Guinga e Paulo César Pinheiro, que, em 1993, compuseram “Saci” para lembrar a história do Saci-Pererê: “Quem vem vindo ali/ É um preto retinto e anda nu/ Boné cobrindo o pixaim/ E pitando um cachimbo de bambu”. O Internacional de Porto Alegre foi um dos primeiros clubes brasileiros a contratar atletas negros, mesmo antes do profissionalismo. Por seu pioneirismo na luta contra o racismo, o clube adotou o saci-pererê como mascote desde a fundação.
“Paraibeiro” (choro-baião, 2016) – Zé Ramalho, Waldir Silva e Raphael Vidigal
Mineiro de Bom Despacho, o cavaquinhista Waldir Silva gravou, em 1981, o disco “Cavaquinho Camarada Nº 3”, que trouxe uma participação mais do que especial. Além de interpretar “Pelo Vinho e Pelo Pão”, Waldir registrou uma versão para “Pai e Mãe”, de Gilberto Gil, declamada por Zé Ramalho. Os dois se conheceram nos estúdios da CBS, no Rio, onde ambos eram contratados. A amizade resultou em “Paraibeiro”, parceria instrumental cujo título brincava com o fato de um ser paraibano e o outro mineiro. Com letra de Raphael Vidigal, a música foi gravada no disco “Waldir Silva em Letra & Música”, de 2016, pela cantora mineira Luana Aires.