Se, para o mundo, o ano de 1968 foi aquele que não terminou, devido às mudanças comportamentais e políticas provocadas pelas rebeliões juvenis, que culminaram com a contracultura, não há dúvidas de que, no Brasil, o ano de 1973 foi um dos mais prolíficos para a música brasileira, com sucessos que embalaram gerações e seguem tocando os corações dos mais jovens. De Jair Rodrigues a Vanusa, passando por Benito Di Paula, Clara Nunes, João Bosco e Elis Regina, o cardápio é amplo e diverso.
“O Importante É Ser Fevereiro” (samba, 1973) – Wando e Nilo Amaro
Jair Rodrigues arriscou-se poucas vezes como compositor. Numa dessas invocou a parceria do cantor Wando, em “Se Deus quiser”, lançada em 1972, de ambos. No ano seguinte, porém, preferiu registrar uma canção em que só se metia a soltar voz, com a categoria característica. Composta por Nilo Amaro e Wando, “O Importante É Ser Fevereiro” foi outro grande sucesso de Jair em 1973, e dava provas de que para ele não existiam barreiras quanto à boa música.
“Cabaré” (MPB, 1973) – João Bosco e Aldir Blanc
Elis Regina descobriu e selecionou para o seu álbum de 1973 uma música de João Bosco que, à época, era apenas um aspirante a astro da música popular brasileira, mas já contava com a admiração de Elis. “Cabaré”, outra parceria com Aldir Blanc, também foi regravada por Célia, em um dueto com o violonista Dino Barioni. A música tem como cenário um cabaré, casa noturna de amor, desejo e perdição, onde os corpos se entregam e as almas se revelam inteiras.
“Sangue Latino” (pop-rock, 1973) – João Ricardo e Paulo Mendonça
O primeiro disco dos Secos & Molhados já abria com uma canção que entraria para a história da música brasileira: “Sangue Latino”, música do português João Ricardo, fundador do conjunto, com Paulo Mendonça, que, décadas depois, se tornaria diretor-geral do Canal Brasil. O baixo da introdução ficaria tão famoso quanto os versos que falam sobre os descaminhos e a condição de resistência da América Latina.
“Jurei mentiras e sigo sozinho/ Assumo os pecados/ Os ventos do norte não movem moinhos/ E o que me resta é só um gemido/ Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos/ Meu sangue latino/ Minha alma cativa”. A música foi regravada por Ney Matogrosso no ano de 1999, em uma apresentação ao vivo em Belo Horizonte, no Palácio das Artes.
“Magrelinha” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Na capa do disco “Vale Quanto Pesa: Pérolas de Luiz Melodia”, Pedro Luís aparece cercado por pipas das mais variadas cores e escorado em uma bicicleta, chamada em alguns lugares do Brasil de “magrela”, algo que pode ser uma referência enviesada a “Magrelinha”, um dos títulos mais conhecidos da obra de Luiz Melodia presente no álbum. “Magrelinha” foi lançada no disco “Pérola Negra”, de 1973, e logo se destacou por seu conteúdo contraditório, entre a esperança e a dura realidade. “O pôr-do-sol/ Vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso/ E libertar/ Da areia preta e do arco-íris cor de sangue...”.
“Tristeza, Pé no Chão” (samba, 1973) – Armando Fernandes
Clara Nunes começou a experimentar o sucesso nacional quando passou a cantar sambas, já morando no Rio de Janeiro. No entanto foi no Festival de Juiz de Fora, voltando ao estado de nascimento, Minas Gerais, que a cantora apresentou pela primeira vez ao público o que seria um dos maiores sucessos da carreira.
O ano de 1973 seria de grandes realizações. Além de excursionar por Portugal e apresentar-se em Lisboa, participou do show “O Poeta, a Moça e o Violão”, ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho. No entanto a música que marcaria essa fase da carreira seria “Tristeza, Pé no Chão”, um samba de Armando Fernandes.
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura, em 1973. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras.
Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva...”, diz a mulher.
“Al Capone” (rock, 1973) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Só mesmo com a irreverência de Raul Seixas para passar um pito no mais famoso mafioso de todos os tempos com acento baiano. “Hei, Al Capone, vê se te emenda/ Já sabem do teu furo, nego/ No imposto de renda.../ Hei, Al Capone, vê se te orienta/ Assim desta maneira, nego/ Chicago não aguenta...”, inicia o rock “Al Capone”, parceria de Raul e Paulo Coelho lançada em 1973, no disco de estreia do cantor, “Krig-ha, Bandolo!”. Ali, já apareciam marcas do trabalho de Raul, como o interesse histórico e a mania de misticismo. Além de Al Capone, outras personagens históricas são convocadas à baila, como o imperador Júlio César, o cangaceiro Lampião, Jimi Hendrix, Frank Sinatra e até Jesus Cristo.
“Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
Ao longo do repertório de “Planeta Fome”, Elza Soares reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha. Lançada originalmente por Gonzaguinha, em 1973, “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” foi cantada por ele durante a turnê que empreendeu ao lado do pai, Luiz Gonzaga, no ano de 1981, intitulada “Vida de Viajante”. A música também recebeu uma versão comovente do grupo “As Chicas”, que a interpretou em dezembro de 2008, na capital Rio Branco, no Acre, em homenagem ao grande líder ambientalista Chico Mendes.
“Manhãs de Setembro” (balada, 1973) – Vanusa e Mário Campanha
É com justiça que se argumenta que Vanusa não teve o reconhecimento à altura do seu talento. Ainda assim, ela recebeu alguns prêmios, como, por exemplo, ao participar do IV Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo, quando cantou “Namorada”, com o marido Antônio Marcos, e foi ovacionada pela plateia. Em 1974, ela foi escolhida a revelação feminina no festival de Piriápolis, no Uruguai.
Na ocasião, interpretou um dos maiores sucessos de sua trajetória, “Manhãs de Setembro”, parceria com Mário Campanha, lançada em disco no ano de 1973. Em 1980, Vanusa conseguiria o terceiro lugar no Festival de Seul, na Coreia do Sul, com a música “Mágica Loucura”, parceria com o então marido Augusto César Vannucci, é mais um hit.
“Até Quem Sabe” (MPB, 1973) – João Donato e Lysias Ênio
“Meu gosto sempre foi exclusivamente pela música, nunca me interessei por outras artes. Na música clássica eu admiro muito os impressionistas, Ravel, Debussy”, confessa o compositor cujas melodias clássicas – num sentido mais abrangente que a definição erudita – de “A Paz”, “Bananeira”, “A Rã”, “Café com Pão”, e outras, foram letradas por Gilberto Gil, Caetano Veloso e o irmão Lysias Enio. Com Lysias, João Donato compôs a belíssima “Até Quem Sabe”, uma canção de despedida lançada por Dóris Monteiro, em 1973, e regravada por Gal no disco “Cantar”, de 1974. E a música também foi gravada por Maysa.
“Retalhos de Cetim” (samba de carnaval, 1973) – Benito Di Paula
“Retalhos de Cetim” foi a canção que catapultou a carreira de Benito Di Paula e, até hoje, é uma das mais populares, não apenas de seu repertório, mas da música brasileira. Muita gente que nunca ouviu falar em Benito Di Paula conhece essa canção, seja de ouvido ou cantando em festas e bares. Aqui, o compositor consegue um feito curioso.
Embora a ação da letra se passe em pleno Carnaval, a história é triste, de decepção, fato raríssimo nas canções que mencionam a folia mais popular do país. Apesar disso, a melodia induz a plateia a cantar a plenos pulmões, solidarizando-se com a história do protagonista, abandonado por sua cabrocha em pleno Carnaval. “Retalhos de Cetim” contabiliza quase 80 regravações, de Lobão a Cauby Peixoto e Alcione.
“Canteiros” (MPB, 1973) – Fagner e Cecília Meireles
Um ano depois de ser gravada por Elis Regina, a música “Mucuripe” ganharia uma versão do próprio Fagner, em seu disco de estreia, “Manera Fru Fru Manera ou O Último Pau de Arara” (1973). “Em termos de repertório, esse disco abriu um leque de tendências que depois vim a executar. Ele é bem aberto, vai da canção ao rock, explora todas as possibilidades, algo que ainda nem existia na música brasileira ou existia apenas de forma fatiada, mas não em um LP completo”, avalia Fagner que, no mesmo disco, lançou “Canteiros”, quando musicou versos de Cecília Meireles e foi processado pelos herdeiros.
“Bala com Bala” (MPB, 1973) – João Bosco e Aldir Blanc
Mineiro de Ponte Nova, João Bosco tornou-se conhecido em todo o Brasil justamente porque, ao lado do principal parceiro Aldir Blanc, cantou as mazelas e glórias do país. Em 1973, há 50 anos, ele lançou o seu primeiro disco, que tinha, como destaque, “Bala com Bala”, gravada um ano antes por Elis Regina, a mais exuberante intérprete de seu repertório.
Elis se impressionou com o garoto de Ponte Nova quando, um ano antes, ele dividiu um disco de bolso, que saía no jornal O Pasquim, com ninguém menos do que Tom Jobim. A música de sua autoria era “Agnus Sei”, que condensava misticismo e cultura árabe em um samba brasileiro com forte influência da matriz africana.
“Meio-de-campo” (MPB, 1973) – Gilberto Gil
Em 1973, Gilberto Gil homenageia o jogador Afonsinho, habilidoso meia do Fluminense que tinha uma combativa postura contra a ditadura militar instaurada no Brasil desde 1964. Voltando do exílio imposto pelos militares em Londres no ano de 1972, Gil mistura, com a habitual inteligência, versos que fazem referência tanto ao esporte como ao momento político vivido, além de reflexões existenciais.
Lançada com sucesso por Elis Regina no álbum “Elis”, a bordo de um instrumental de primeira, a música faz referência a outros ídolos dos gramados, como o Rei Pelé, atacante do Santos, e Tostão, do Cruzeiro, dois importantes nomes na conquista, pela Seleção Brasileira, do Tricampeonato Mundial no México três anos antes, em 1970. Também foi regravada pelo autor em seu álbum de 1973, “Cidade do Salvador”, e anos depois, com o acompanhamento de Dominguinhos.
“Folhas Secas” (samba, 1973) – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
No ano de 1973, lembrando com nostalgia sua mocidade, Nelson Cavaquinho compôs ao lado do parceiro, Guilherme de Brito, a essencial “Folhas Secas”, que prestava uma homenagem à querida Estação Primeira de Mangueira, onde ele conhecera o samba que o levaria por toda a vida.
A música foi alvo de uma polêmica jamais resolvida entre Elis Regina e Beth Carvalho, que a lançaram no mesmo ano. Inicialmente dada para Beth gravar, foi levada pelo arranjador César Camargo Mariano para Elis. O resultado foram dois registros belíssimos para a música brasileira e uma desavença severa entre essas duas intérpretes.
“Eu Bebo Sim” (samba de carnaval, 1973) – Luiz Antônio e João do Violão
A maior inflexão na trajetória de Elizeth Cardoso ocorreria em 1973, com a marchinha “Eu Bebo Sim”, de João do Violão e Luiz Antônio (1921-1996), assumida ode ao hedonismo etílico, com conclusões pra lá de divertidas que seguem embriagando foliões: “Eu bebo sim/ E tô vivendo/ Tem gente que não bebe/ E tá morrendo”. Até hoje, a música é a mais tocada do repertório de Elizeth. Em 2002, Elza Soares regravou a música acompanhada pelo Monobloco, em um conjunto que ainda apresentou “Salve a Mocidade” e “Oba”.
“Deixa Eu Dizer” (MPB, 1973) – Ivan Lins e Ronaldo Monteiro
Claudya ficou, durante muito tempo, relegada a um injusto limbo. Até que, em 2008, o rapper Marcelo D2 incluiu um sample de “Deixa Eu Dizer” na música “Desabafo”: “Deixa, deixa, deixa eu dizer/ O que penso desta vida/ Preciso demais desabafar”, ecoava a voz límpida e de largo alcance.
Composição de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza que deu nome ao álbum lançado pela cantora em 1973, a música traz evidente teor de protesto, e a junção das duas músicas a partir da criação do rapper Marcelo D2 provou que algumas posturas resistem ao tempo muito bem. Afinal de contas, Claudya não desiste fácil.
“O Vendedor de Bananas” (samba-rock, 1973) – Jorge Ben Jor
Jorge Benjor é um dos maiores inovadores da música brasileira. Tanto que até hoje rejeita o rótulo “samba-rock” para suas composições. É algo indefinível, sem preço, em que não é possível colocar nenhuma tarja definitiva e limitadora. “O vendedor de bananas”, outra dessas inestimáveis peças, ela foi lançada em 1973 por seu autor.
Nela um menino, humilde vendedor de bananas, exalta a riqueza e diversidade da fruta símbolo do Brasil, demonstrando orgulho e não mais vergonha desta que foi a expressão, para muitos e durante anos, da pobreza do país. Pois “a preço de banana” pode ter outra conotação quando é dita, encenada e cantada por Jorge Ben. Foi regravada pelo grupo Os Incríveis e Ney Matogrosso.
“Na Linha do Mar” (samba, 1973) – Paulinho da Viola
Paulinho da Viola inicia o samba “Na Linha do Mar” com uma informação que qualquer pessoa que já foi despertada pelo cacarejo do animal conhece: “Galo cantou às quatro da manhã…”. Não é por acaso que o galo é reconhecido como um despertador natural para quem trabalha na roça. Composto em 1973, foi gravado com enorme sucesso pela mineira Clara Nunes, em 1979, e, depois, por Clementina de Jesus. Famoso pela raça, o Atlético Mineiro adotou o galo como mascote para aludir ao espírito aguerrido. Já o CRB elegeu o galo de campina.
“Mestre Jonas” (rock rural, 1973) – Sá, Rodrix e Guarabyra
O “Peixe com Coco” da Terezinha é outro prato típico da música brasileira, pareando com as delícias transformadas em verso por Dorival Caymmi. Esse samba composto pelo trio Alberto Lonato, Josias e Maceió do Cavaco ganhou a voz iluminada de Clara Nunes, em 1980. Por ser um clube praiano, localizado no litoral de São Paulo, o Santos recebeu o apelido de Peixe. Apesar disso, adotou como mascote a baleia, o maior animal do planeta, e que aparece na canção “Mestre Jonas”, gravada por Sá, Rodrix & Guarabyra, em 1973, no disco “Terra”.