Inerte como uma estátua de gesso, os cabelos presos para o alto em um coque elegante, ela movimenta somente a boca com as palavras que tornaram a “Garota de Ipanema” conhecida no mundo inteiro. Depois de Carmen Miranda (1909-1955), foi Astrud Gilberto, que morreu nesta segunda (5), aos 83 anos, a principal responsável pela exportação da música brasileira – ainda que em língua estrangeira.
Separadas por décadas de diferença, as divas tiveram destinos tristemente parecidos. Carmen foi triturada pela indústria hollywoodiana até enfartar, após noites sem dormir, aos 46 anos. A estrela foi usada e depois descartada como mero produto artesanal.
Astrud Gilberto, por outro lado, acabou relegada ao ostracismo e decidiu optar por ele no final da vida, recusando-se a gravar, dar entrevistas e subir aos palcos, mas, antes, se viu enganada e mal paga pelos homens que comandavam a indústria fonográfica nos Estados Unidos, para onde ela rumou ao lado do marido, o ícone da Bossa Nova, João Gilberto, com quem gravou ao lado do saxofonista Stan Getz – outra lenda do jazz –, o histórico LP “Getz Gilberto” (1963), em que seu nome, propositalmente, não é citado. A sua participação ocorre em “Garota de Ipanema” e “Corcovado”, ambas em inglês.
Decisiva. As histórias sobre essa participação fundamental são contraditórias, com executivos, produtores e até Stan Getz reivindicando para si o mérito de ter “inventado” Astrud Gilberto, então uma garota de 20 e poucos anos da zona sul carioca, que soltava a pequenina voz apenas entre amigos no famoso apartamento de Nara Leão, reduto da bossa nova no Rio, ou em festivais estudantis sem muita responsabilidade.
A timidez conhecida transparece no referido vídeo duma apresentação nos Estados Unidos, em 1964, onde apenas os leves movimentos de quadris acompanham o ritmo da “Garota de Ipanema”. Fato é que, ao colocar voz na composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, que estava ao piano na ocasião, Astrud contribuiu decisivamente para alavancar as vendas do álbum, e alçar “Garota de Ipanema” ao segundo lugar da parada de sucessos norte-americana, atrás apenas de outra atração estrangeira: os garotos de Liverpool também conhecidos como The Beatles.
Ao sucesso, sucedeu-se a ganância dos envolvidos – exceto Astrud, a estrela. Getz e os executivos trabalharam para que ela recebesse mixarias pela execução da faixa, enquanto acumulavam patrimônio e compravam mansões.
Legado. O machismo da ocasião – que, inelutavelmente, segue entre nós –, especulava através da imprensa sobre um suposto romance dela com Getz, explorava o fim do casamento com João Gilberto (que se envolveria com a cantora Miúcha), agredindo, desta forma, o grande talento musical de Astrud, com uma voz miúda, talhada para a bossa nova, que ela sabia colocar, com precisão, a serviço da canção, realçando as intenções da letra e da melodia com uma sensualidade quase indiferente, altiva, dona de si, e, até certo ponto, autossuficiente. E Astrud, ao cantar, era a mulher no controle que eles temiam.
Apesar das sabotagens que sofreu, Astrud protagonizou outros momentos igualmente brilhantes na terra do Tio Sam, para onde se mudou definitivamente, como ao gravar “Fly Me To The Moon” com suavidade rara, interpretar “Far Away” com o ídolo Chet Baker e, em dueto com George Michael, dar voz a “Corcovado”, a fim de arrecadar fundos para o tratamento de AIDS.
Nos últimos tempos, Astrud Gilberto vivia como uma reclusa senhora octogenária, que se dedicava à causa dos animais e protestava contra a crueldade humana. E as canções que ela eternizou, com refinamento espontâneo, estão nas redes.