A intenção de um autor está longe de ser tão importante quanto o que ele de fato realiza. É óbvio que, quase sempre, nossas expectativas são frustradas por nós mesmos. A distância entre o que se idealiza e o que se realiza é o que chamamos, grosseiramente, de “vida”. Estamos no domínio da arte.
A ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, ganhou uma versão concebida pelo ambientalista, filósofo, poeta e escritor indígena Ailton Krenak, um dos mais importantes pensadores do nosso tempo. A seu lado, Cibele Forjaz, doutora em Artes Cênicas, dirige o espetáculo. Apresentadas as credenciais, vamos à polêmica.
Composta em 1870 por aquele que é considerado o mais importante compositor de óperas brasileiro, “O Guarani” estreou em Milão, na língua dos italianos, com libreto adaptado do romance homônimo de José Alencar, publicado em 1857.
As datas são importantes para compreender que, naquela época, fazia sentido expressar um pensamento que a atualidade tratou de tornar anacrônico, para não utilizar sinônimos mais diretos, como preconceituoso, racista e discriminatório.
Não se trata de realizar o “cancelamento” de uma obra. Ela permanece como fato histórico e constatação de uma época, e o que permitiu seu impacto foi, além da estética, os valores vigentes de então.
Na atual montagem de Krenak, os protagonistas ganham correspondentes indígenas, com direito a coro em sua língua, inserindo a dose de reflexão necessária a esta obra na contemporaneidade, até para espantar o mofo. A chiadeira da elite paulistana que se deparou com a novidade no Theatro Municipal, que ainda se grafa como no período colonialista, é representativa de um pensamento escravocrata que insiste em manter-se arraigado.
A justificativa de que Carlos Gomes não gostaria da atual versão, além de mediúnica, é inócua. Uma obra que se pretende vultosa deixa de pertencer ao indivíduo para se entregar à coletividade, em diálogo constante com seu tempo, como preconizava Nina Simone. Nesse caso, a intenção conta menos do que o fato. Arguir que Gomes pretendeu somente encenar uma história romântica beira o mau-caratismo.
A ideologia está presente em qualquer circunstância humana, quanto mais numa obra artística. Não existe pensamento neutro, “técnico” como sugerem certos contemporâneos, há sempre uma visão de mundo a distinguir a realidade, e é ela que estrutura, por exemplo, o enlace amoroso entre um indígena disposto a se tornar católico, “por amor”, e não “pela sobrevivência”, como corrige Krenak, e uma ingênua mocinha branca, acostumada às regalias destinadas à sua classe.
Para ficar no terreno da música, podemos pegar um exemplo simples. Faz algum sentido gravar composições da década de 1950, no cuidado de não ir muito longe, com os mesmos arranjos? Há quem se levante agora da cadeira para dizer que uma coisa é a forma e, outra, é o conteúdo, quando, na verdade, ambas estão amalgamadas como corpo e alma. Uma não existe sem a outra.
O que Krenak e Cibele Forjaz fazem é manter o princípio artístico de que esta atividade humana não serve para reafirmar o que já está dito, tampouco para acariciar a plateia com uma experiência meramente escapista e convencional. O público é sempre previsível. Cabe ao artista inserir o imprevisível à cena. Afinal de contas, o único e mortal papel da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma libertação. E isso entenderam Cibele e Krenak, ao contrário dos aristocratas paulistas, de ontem e sempre.