Radamés Gnatalli nasceu em Porto Alegre, no dia 27 de janeiro de 1906, e morreu no Rio de Janeiro, no dia 13 de fevereiro de 1988, aos 82 anos. Um dos arranjadores mais prestigiados do país, ele marcou seu nome na história ao abolir as distâncias entre a música erudita e popular. Com sólida formação acadêmica, ele assinou os arranjos de peças que se tornaram verdadeiros clássicos, caso de “Carinhoso”, de autoria de Pixinguinha e Braguinha, “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, “Copacabana”, eternizada na voz de Dick Farney, e muitas outras, angariando uma legião de fãs, sem rótulos nem tiques.
“Carinhoso” (samba-choro, 1937) – Pixinguinha e João de Barro
Pixinguinha foi regente de várias orquestras, entre elas a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, Oito Batutas e a Diabos do Céu. Suas inovações melódicas provocaram certa celeuma nos meios de imprensa, que não compreendiam tamanha sofisticação. Ao escrever um choro em duas partes, e não em três, como era costume, o próprio compositor sabia que seria alvo de reclamações. Por isso mesmo, “Carinhoso” demorou 20 anos para tomar forma definitiva e alcançar sucesso irrevogável.
O que só aconteceu quando João de Barro, o Braguinha, adentrou a ourivesaria de Pixinguinha e lapidou com versos a refinada harmonia de “Carinhoso”. Desde a gravação de Orlando Silva em 1937, por recusa de Francisco Alves e quebra de compromisso de Carlos Galhardo, a música se tornou um dos maiores emblemas do cancioneiro brasileiro, com mais de 200 regravações, quebrando o preconceito com a obra de Pixinguinha. A parte orquestral ficou a cargo de Radamés Gnatalli. Um luxo!
“Aquarela do Brasil” (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso
Os arranjos criados pelo maestro Radamés Gnatalli, com um piano imitando o som de tamborins, e a percussão comandada por Luciano Perrone, contribuíram decisivamente para abarcar ainda mais grandiosidade à “saudação eterna” de Ary Barroso, como ele próprio dizia, com “Aquarela do Brasil”. Sobre a façanha, Radamés comentou: “Esse negócio não é meu não. É do Ary Barroso. Eu apenas botei no lugar certo. O Ary queria que eu usasse o tema nos contrabaixos, mas não ia fazer efeito nenhum. Eu então botei cinco saxes fazendo aquilo. O que eu inventei foi o arranjo para botar a sugestão no lugar certo”. Sucesso imediato na voz de Francisco Alves, foi lançada por Araci Cortes e incluída no espetáculo “Joujoux e Balangandãs” na voz do barítono Cândido Botelho.
“Copacabana” (samba-canção, 1946) – Braguinha e Alberto Ribeiro
Braguinha, que também atendia pela alcunha de João de Barro, foi o criador de marchinhas que alegraram gerações, como “Turma do Funil”, “Linda Loirinha”, “Yes, Nós Temos Bananas” e “Pirata da Perna de Pau”. Com Lamartine, ele compôs “Cantores do Rádio”. Em 1936, Carmen Miranda lançou a sua canção “Balancê”, que ganhou uma versão de Gal Costa em 1979. Com Alberto Ribeiro, o seu parceiro mais frequente, ele também compôs inúmeros sambas-canções de sucesso, de que é um dos exemplos mais bem-sucedidos a linda “Copacabana”, lançada por Dick Farney em 1946, em clima de alegria e bossa.
“A Voz do Morro” (samba, 1955) – Zé Kéti
Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Kéti tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: “A Voz do Morro”, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravada por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme “Rio 40 Graus”, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e ganhou uma versão de Luiz Melodia em 1980.
“Viva Meu Samba” (samba, 1958) – Billy Blanco
“Viva Meu Samba”, lançado em 1958 por Sílvio Caldas, transformou-se no que se pode chamar de hino do gênero. Com acompanhamento do maestro Radamés Gnattali, o próprio autor, Billy Blanco, regravaria a música posteriormente. Entre as diversas regravações destacam-se também as de Jair Rodrigues, Dolores Duran e Roberto Ribeiro. A música trata em seus versos de exaltar o ritmo através dos seus instrumentos, com sua ode a violões, tamborins, pandeiros e reco-recos que foram capazes, através do tempo, de eleger o samba como a mais genuína forma de expressão do povo brasileiro, assim como suas origens e esperanças: “Viva meu samba verdadeiro/ Porque tem teleco-teco…”.
“Penumbra” (peça orquestral, 1959) – Radamés Gnatalli
Nunca se perguntou com quem era o pacto de Paulo Moura. O sorriso terno, até certo ponto angelical, como de uma criança ingênua, tímida, impedia a questão que surgia quando a clarineta do compositor soava. Paulo Moura era capaz de tudo: da exaltação acalorada de “Espinha de Bacalhau”, clássico de Severino Araújo, à contenção vaporosa de “Penumbra”, peça orquestral de Radamés Gnatalli, e que dá a medida de todo o talento do maestro e arranjador, um dos maiores e mais aclamados da história da música brasileira.
“Luz Negra” (samba, 1964) – Nelson Cavaquinho, Amâncio Cardoso e Irani Barros
Nara Leão ouviu Nelson Cavaquinho cantar “Luz Negra”, que, na versão dedilhada por Baden Powell, em 1961, tinha o nome de Irani Barros na parceria, e quando foi lançada, em 1964, o de Amâncio Cardoso. A canção saiu no disco em que a estrela do espetáculo “Opinião” também cantava músicas de Zé Kéti, Elton Medeiros e Cartola. Um ano depois, a música serviu de trilha para o filme “A Falecida”, adaptação de Leon Hirszman para a peça de Nelson Rodrigues, com orquestração de Radamés Gnatalli. Também em 1965, Nelson cantou seu lamento rumo à despedida no disco de Elizeth Cardoso, em que subiam o morro os sambistas Paulinho da Viola e Nelson Sargento. Luxo...
“História de Um Valente” (samba, 1966) – Nelson Cavaquinho e José Ribeiro de Souza
A primeira cantora a realizar um trabalho apenas com músicas de Nelson Cavaquinho foi a alagoana Telma Soares, em seu disco intitulado “Telma Soares interpreta Nelson Cavaquinho”, com produção de Stanislaw Ponte Preta e arranjos de Radamés Gnatalli. O álbum saiu em 1966, e contava pela segunda vez em disco com a participação de Nelson, ao distribuir sua voz pitoresca em canções como “Rei Sem Trono”, “História De Um Valente” e “Cuidado Com a Outra”, essa uma sátira bem humorada, que usava o pretexto do Dia das Mães para se perdoar a mulher amada. Mais tarde, o sucesso da canção veio através da gravação de Chico Buarque, em 1974.
“O Porquinho” (infantil, 1980) – Vinicius de Moraes e Toquinho
No ano de 1970, Vinicius de Moraes lançou livro infantil baseado na trajetória bíblica da Arca de Noé. A obra se transformou em especial da rede Globo, exibido no Dia das Crianças do ano de 1980. Devido ao sucesso do espetáculo, apresentado no ano da morte de Vinicius, um ano depois surgiu a continuação: “Arca de Noé 2”. E foi nessa segunda versão que o ator e compositor Grande Otelo apareceu em cena cantando “O Porquinho”, poema musicado por Toquinho com arranjos de Radamés Gnatalli.
“Radamés y Pelé” (choro, 1994) – Tom Jobim
Primeira Big Band formada só por mulheres no Brasil, a Jazzmin’s lançou em 2020 o seu primeiro disco. Selecionadas pelo edital do Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo (ProAc), as instrumentistas eternizaram o repertório que se habituaram a apresentar no palco. Ao todo são dez faixas, com inéditas de Newton Carneiro, Rodrigo Morte, Gê Cortes e a própria Lis, casos de “Esperança”, “Fácil Vem”, “7×1” e “Sevilha”. Nos bônus, comparecem “Radamés y Pelé”, de Tom Jobim, com arranjos de Rodrigo Morte, e “Doralice”, de Dorival Caymmi, arranjada por Tiago Costa. “Radamés y Pelé” é nada mais nada menos do que um choro de Tom Jobim lançado em seu derradeiro álbum, que presta homenagem a Radamés Gnatalli, mestre da instrumentação nacional, e Pelé, Rei do Futebol: dois símbolos de brasilidade.