Um dos temas que mais tem mobilizado as sociedades contemporâneas, o aborto segue envolto em tabus: é um assunto espinhoso que os mais progressistas políticos costumam evitar em período eleitoral. Nesse sentido, o documentário “Verde-Esperanza”, dirigido por Maria Lutterbach, com argumento de Giulliana Bianconi, apresenta um dado surpreendente.
Ali se informa que 56% da sociedade brasileira se declara favorável ao aborto. Curiosamente, é quase o número do percentual de mulheres no país. Mas aqui, ao contrário de países vizinhos, a legislação segue atrelada à criminalização da prática. É a partir do paralelo com Colômbia e Argentina que o filme constrói sua narrativa. Se o conteúdo se impõe pela importância, há problema na forma.
Assistimos, praticamente, a uma matéria jornalística, com a frieza que pressupõe uma reportagem, apresentando números que reforçam dados e os pontos de vista apresentados. A capacidade própria da arte, de informar a partir da sensibilidade, da emoção e, essencialmente, da forma, fica prejudicada.
Não há uma única música, um plano diferenciado, um close, uma montagem reveladora, que leve à identificação com as personagens. Elas seguem na tela como os números e as consequências de uma questão que é muito mais social do que matemática. Ultrapassado esse problema, temos uma discussão fundamental a ser feita, e já em andamento, aqui, na América Latina.
As experiências da Colômbia e da Argentina – e do Uruguai, apenas citada, que descriminalizou o aborto em 2012 –, servem de referência para o Brasil. O conflito entre conservadores e progressistas passa a contar com uma nova configuração, onde o primeiro grupo é representado por católicos e evangélicos, numa união estratégica, enquanto cabe às feministas acelerar a roda da história a favor do direito à saúde pública e à autodeterminação do próprio corpo, presentes nas constituições.
É a partir de uma luta política e, portanto, feita sob os limites da representatividade, que se ultrapassam as barreiras. As mulheres são as protagonistas desta História, como não poderia deixar de ser. E os casos assustadores de violências são enfrentados por elas.
Por exemplo, crianças entre dez e onze anos que foram recentemente constrangidas por juízas a seguirem com a gravidez, embora mesmo a lei atual as protegesse. Os lenços verdes – símbolos da esperança – envolvem estátuas de mulheres que lutaram, a seu próprio tempo, por mais liberdade, como a vereadora Marielle Franco, feminista, bissexual, negra e favelada, covardemente assassinada em crime até hoje não solucionado pela polícia brasileira.
O que se constata, ao final das contas, é que há uma estrutura interessada em manter o controle sobre o corpo das mulheres, para que a hierarquia das classes se imponha em uma sociedade desigual e patriarcal. O trunfo do documentário é apresentar as armas à disposição para superar esse cenário. Para além do tabu, existem as questões de liberdade e saúde pública. E mais, a percepção de que a presença do Estado no que diz respeito ao direito ao aborto reduziria a própria incidência de abortos.