Enquanto o coro do samba lhe monta um altar, a sereia do mar de Minas faz evocar a mata, o povo, a prata, o céu do sabiá e as forças da natureza. Clara Nunes acende velas, meche os chocalhos, leva fé para os corações que batucam samba e se banham em manjericão. Espalha alegria da Bahia a Minas, passando pela Portela.
Rodando seu vestido longo e branco, Clara segue o ritmo da morena de Angola com sua voz brasileira de profissão esperança. Uma voz que traz o ouro de Minas banhado pelo mar salgado da Bahia e acompanha um sorriso espontâneo coroado por flores e conchas que lhe enfeitam os cabelos. Um brilho mestiço que se encontra nos olhos, no sorriso e no canto místico de Clara Nunes. No folclore da sereia brasileira que iluminou as minas de ouro dos corações marejados.
“Você Passa, Eu Acho Graça” (samba, 1968) – Carlos Imperial e Ataulfo Alves
Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava soberba engenhosidade. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou coautor da revigorante “Você Passa, Eu acho Graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto na voz de Clara Nunes!
“Ê Baiana” (samba, 1971) – Fabrício Silva, Baianinho, Ênio Santos e Miguel Pancrácio
Adelzon Alves, à época produtor e futuro namorado de Clara Nunes, foi o responsável por dar a guinada na carreira da intérprete. Após 2 álbuns cantando boleros, valsas e samba-canção, Clara aparecia no disco pela primeira vez entoando sambas. Uma das preocupações de Adelzon era, segundo ele mesmo, sempre colocar um samba de avenida no repertório, para o povo cantar a plenos pulmões. Foi o que aconteceu em 1971 com “Ê Baiana”, de autoria de Fabrício Silva, Baianinho, Ênio Santos e Miguel Pancrácio, um sucesso imediato!
“Alvorada no Morro” (samba, 1968) – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho
Lançada por Odete Amaral em 1968 e imortalizada em 1972 no canto de brisa de Clara Nunes, “Alvorada” foi composta em uma das madrugadas em que Carlos Cachaça e Cartola desciam o morro do Pendura a Saia. Os dois se impressionaram com a beleza dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte e iluminavam a paisagem sofrida dos seus moradores. Ali começaram a ser coloridas as estrofes e melodias que ganhariam pinceladas de Hermínio Bello de Carvalho, e representavam a admiração dos autores pelo morro carioca.
“Tristeza, Pé no Chão” (samba, 1973) – Armando Fernandes
Clara Nunes começou a experimentar o sucesso nacional quando passou a cantar sambas, já morando no Rio de Janeiro. No entanto foi no Festival de Juiz de Fora, voltando ao estado de nascimento, Minas Gerais, que a cantora apresentou pela primeira vez ao público o que seria um dos maiores sucessos da carreira. O ano de 1973 seria de grandes realizações. Além de excursionar por Portugal e apresentar-se em Lisboa, participou do show “O Poeta, a Moça e o Violão”, ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho. No entanto a música que marcaria essa fase da carreira seria “Tristeza, Pé no Chão”, um samba de Armando Fernandes.
“Juízo Final” (samba, 1973) – Nelson Cavaquinho e Élcio Soares
O reconhecimento à obra de Nelson Cavaquinho começou a se dar de forma mais intensa na década de 60, a partir das gravações de Ciro Monteiro, Nara Leão e Elizeth Cardoso. Em 1970, ele próprio ganhou a oportunidade de gravar suas músicas em um disco que levava seu nome, e, em 1973, teve o derradeiro registro solo, onde cantava pela primeira vez ao lado do eterno parceiro Guilherme de Brito. Nelson ainda tocava pela primeira vez em disco o instrumento do apelido. Já com o nome bastante consolidado no mercado, Clara Nunes lançou no álbum “Claridade”, de 1975, a música esperançosa de Nelson que decretava a chegada do sol no horizonte, a vitória do bem sobre o mal, a luz a brilhar nos corações. O amor será eterno, era o seu “Juízo Final”, sempre atual.
“Meu Sapato Já Furou” (samba, 1974) – Elton Medeiros e Mauro Duarte
Mauro Duarte, como de praxe, queria contribuir com um samba para o novo álbum de Clara Nunes, “Alvorecer”, no ano de 1974. Depois de apresentar uma série deles, que acabaram não agradando, o compositor, já desanimado, resolveu cantar os versos de uma parceria com Elton Medeiros, mas que ele não considerava apropriada para o momento. Quando enfim entoou a primeira parte de “Meu Sapato Já Furou”, não houve dúvidas por parte de Clara, nem de ninguém. O samba já estava escolhido: “Meu sapato já furou, minha roupa já rasgou, e eu não tenho onde morar…”.
“Conto de Areia” (samba, 1974) – Romildo Bastos e Toninho
Romildo Bastos e Toninho contam que foram obrigados a mudar um verso da canção “Conto de areia”, que se transformaria em sucesso nacional no ano de 1974. Á época, meio contrariados, os dois foram convencidos pelo produtor Adelzon Alves a substituir a palavra “ebó”, com o argumento de que somente as pessoas ligadas ao candomblé e à umbanda entenderiam a expressão. Com a substituição o refrão virou: “era um peito só, cheio de promessa, era só, era um peito só, cheio de promessa, era só”. Era o começo da incursão de Clara Nunes na temática da religiosidade afro-brasileira.
“Mente” (samba-canção, 1978) – Paulo Vanzolini e Eduardo Gudin
“Para cantar nos meus discos é obrigatório ter duas qualidades: ser meu amigo e ter bom caráter”. É essa afirmativa que enchem as obras de Paulo Vanzolini de músicos consagrados e ilustres desconhecidos do grande público, com a realeza de gozarem do prestígio da amizade do compositor. Poucos tiveram tamanho privilégio, dentre eles, Eduardo Gudin, que em 1978 dividiu duas composições com o compositor-poeta, “Longe de Casa”, e “Mente”, reiterada por Clara Nunes no mesmo ano, com a acentuação perfeita das contradições fetichistas: “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama…Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo”.
“Peixe com Coco” (samba, 1980) – Alberto Lonato, Josias e Macéio
O “Peixe com coco” da Terezinha é outro prato famoso da música brasileira. No samba composto por Alberto Lonato, Josias e Maceió do Cavaco em 1980, a anfitriã nos convida a ir até sua casa e provar a receita, e ainda garante: haverá pinga, alegria e samba até o sol raiar. Além disso, muito tempero, atum, sardinha, ostra, siri e mexilhão. As delícias típicas do mar são apresentadas na voz límpida e iluminada de Clara Nunes, que as coloca na mesa de jantar para que nossos ouvidos saboreiem esse samba de roda bem brasileiro. Não há quem resista ao “Peixe com coco” da Terezinha!
“Portela na Avenida” (samba, 1982) – Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
A portelense Clara Nunes vivia pedindo ao marido, Paulo César Pinheiro, um samba em homenagem à sua escola. Acontece que o poeta sentia-se meio inibido para a tarefa, pois, além de ter um coração mangueirense, achava que já existia uma obra definitiva sobre a Portela, o samba “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, de Paulinho da Viola. Mesmo assim, para agradar à mulher, começou a pensar no assunto e até criou uma pequena célula melódica que não conseguiu desenvolver a contento.
Um dia, quando menos esperava, encontrou a ideia numa sala de sua própria casa, onde Clara havia montado um altar para as suas devoções: a imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, uma santa negra com o seu manto azul e branco (as cores da Portela), o pombo de asas abertas, representando o Espírito Santo (a águia portelense), enfim, a combinação do místico com o profano.