O sentimento de gratidão é um dos mais nobres que o ser humano é capaz de sentir, e por isso aparece com frequência no repertório de grandes nomes da música mundial, indo do samba à MPB. Artistas consagrados como Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Xande de Pilares souberam transformar essa sensação única numa poesia cantada a plenos pulmões, emocionando plateias ao redor de todo mundo.
“Gracias a La Vida” (música folclórica, 1966) – Violeta Parra
Com uma inconfundível risada no começo da música folclórica, “Gracias a la vida”, de 1966, Clodovil Hernandes apresenta logo de cara ao público uma de suas facetas mais conhecidas e cobiçadas: a irreverência.
Lançada pela autora Violeta Parra no último álbum antes de cometer suicídio, a canção é até hoje uma das latino-americanas mais regravadas de todos os tempos, por nomes como a argentina Mercedes Sosa e a brasileira Elis Regina, consideradas divas e referências do canto em seus países.
A versão de Clodovil foi gravada em 2006 para abrir o espetáculo “Eu & Ela”, em que o estilista mais uma vez se aventurava nos palcos como cantor, ator e o que mais fosse necessário. Um artista completo que fazia da qualidade seu único limite. Por isso ele agradecia: “Gracias a la vida/que me ha dado tanto…”.
“Maior É Deus” (samba, 1974) – Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro
Beth Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de maio de 1946, e morreu na mesma cidade, no dia 30 de abril de 2019, às vésperas de completar 73 anos, após uma longa batalha contra lesões na coluna que a levaram a se apresentar, inclusive, deitada.
Uma das maiores cantoras da música brasileira, Beth Carvalho ficou conhecida como “A Madrinha do Samba”, por seu envolvimento com o gênero e a descoberta de nomes do quilate de Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz, dentre outros.
Entre os maiores sucessos de sua carreira destacam-se “Camarão Que Dorme a Onda Leva”, “Vou Festejar”, “Coisinha do Pai”, “Andança”, “Folhas Secas” e “1.800 Colinas”. Em 1974, Beth lançou, no LP “Pra Seu Governo”, o samba “Maior É Deus”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, reafirmando a fé e esperança na força do povo brasileiro. A música foi regravada por ela no ano de 1979.
“Onde a Dor Não Tem Razão” (samba, 1981) – Paulinho da Viola e Elton Medeiros
Elton Medeiros (1930-2019) tinha fama de difícil, genioso. Suas melodias também não eram das mais fáceis. Apesar disso, quando tocadas, espalhavam uma beleza melancólica, que dava a impressão de simplicidade, resultado da perfeita harmonização entre suas partes.
Como ninguém, ele dominava as capacidades percussivas de uma caixinha de fósforos, instrumento usado por bambas como o conterrâneo Zé Kéti (1921-1999) e o paulista Adoniran Barbosa (1910-1982).
Com o parceiro mais constante, Paulinho da Viola, cunhou “Onde a Dor Não Tem Razão”, outro sopro de esperança em meio à sofreguidão: “Nele a semente de um novo amor nasceu…/ Livre de todo o rancor, em flor se abriu…”.
“Nasci para Bailar” (mambo, 1982) – João Donato e Paulo André Barata
Um som característico e inventivo. Assim pode ser definido o estilo único criado por João Donato na música brasileira, a partir da mistura de ritmos latinos, especialmente da canção cubana, com o jazz.
Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato esteve a vida toda associado à bossa nova, embora fosse muito diferente de seus pares. Sua personalidade era diametralmente oposta à do outro Papa da Bossa. Enquanto João Gilberto era introspectivo, Donato era pura expansividade.
Um dos exemplos bem acabados dessa relação com a vida aparece na extasiante, alegre e bem-resolvida “Nasci para Bailar”, canção de acento caribenho, com vocação para o mambo, em parceria com Paulo André Barata. Título de disco lançado por Nara Leão, em 1982, a canção agradece e celebra a vida em todas as suas circunstâncias.
“Andar Com Fé” (MPB, 1982) – Gilberto Gil
As músicas “Louvação” e “Procissão”, respectivamente primeira e última faixa do primeiro LP de Gilberto Gil, lançado em 1967, revelam a ligação do compositor com a espiritualidade e as manifestações religiosas que apareceriam em outros momentos marcantes de sua carreira, como em “Se Eu Quiser Falar Com Deus”. Outro caso de emblemático é o da canção “Andar Com Fé”, que se converteu em hino de determinação e esperança. A música foi lançada pelo compositor em 1982, no bem-sucedido disco “Um Banda Um”.
“Deixa a Vida Me Levar” (samba, 2002) – Serginho Meriti e Eri do Cais
Sérgio Roberto Serafim, mais conhecido como Serginho Meriti, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 1º de outubro de 1958, no bairro de Madureira. Criado na cidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, adotou o nome artístico por essa razão.
Filho de pai gaúcho e violonista e de mãe cantora e compositora de hinos religiosos, conviveu com a música desde cedo em sua casa.
Parceiro de nomes importantes do samba, como Alcione, Zeca Pagodinho, Neguinho da Beija-Flor e Arlindo Cruz, ele é autor de alguns dos maiores hinos do gênero, como “Deixa a Vida Me Levar”, parceria com Eri do Cais consagrada por Zeca Pagodinho.
“Felicidade” (balada, 2010) – Chico César e Marcelo Jeneci
Disco de estreia do cantor e compositor paulista Marcelo Jeneci, “Feito Pra Acabar”, de 2010, congrega parcerias do anfitrião com nomes de peso da música brasileira, como Arnaldo Antunes, Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik.
No entanto, além da faixa-título, o destaque ficou por conta de “Felicidade”, música escrita com o paraibano Chico César, que condensa, em seus últimos versos, a “fofura” desse trabalho: “Chorar, sorrir também e dançar/ Dançar na chuva quando a chuva vem”.
Para ajudar no êxito da empreitada, essa balada cheia de boas energias e mensagens positivas ganhou videoclipe que acumula 21 milhões de cliques. A música foi regravada por Elba Ramalho no ano de 2020.
“Partilhar” (balada, 2014) – Rubel
Talvez essa canção tenha passado desapercebida do grande público quando foi lançada, lá em 2014, pelo programa Sofar Sounds, ou mesmo quando, em 2018, finalmente integrou um álbum, o “Casas”, do cantor Rubel, mas nada que um videoclipe com a participação de Marina Ruy Barbosa e a inserção da dupla Anavitória não possa consertar.
A recriação da música gerou um hit, e, de lá pra cá, passou a ser comum a execução em casamentos de “Partilhar” e a escolha por vários casais de ter a música como aquela que marca o relacionamento.
“Se for preciso/ Eu pego um barco, eu remo/ Por seis meses, como peixe pra te ver/ Tão pra inventar um mar grande o bastante/ Que me assuste e que eu desista de você”, diz a abertura da canção, antes de entrar no refrão: “Eu quero partilhar/ A vida boa com você”, simbolizando o companheirismo e a cumplicidade desse romance.
“Gratidão” (samba, 2018) – André Renato e Ronaldo Barcelos
Xande de Pilares diz que, “para começo de conversa, o samba nunca saiu de seu lugar”. Ele defende que, desde que era criança, no auge da Jovem Guarda, “surgiram diversos movimentos, cada um com o seu momento, como pop rock, axé, forró, sertanejo e funk, que já foi muito discriminado e hoje dá oportunidade para a molecada da favela”, aponta. “E o samba permanece”, completa. Como prova, ele apresenta a força do samba “Gratidão”, de André Renato e Ronaldo Barcelos, lançado em 2018, com sucesso no Brasil todo, em que o cantor agradece, justamente, as conquistas que a música lhe deu.
“Porto-poema” (samba, 2023) – Raphael Vidigal e Marcos Frederico
O inesperado acendeu a canção “Porto-poema”, que nasceu com outro nome, e andamento diferente. O mundo estava sob uma pandemia quando o jornalista e poeta Raphael Vidigal recebeu do músico e habilidoso instrumentista Marcos Frederico uma melodia para colocar letra.
Diante daquele cenário de desolação e medo veio à luz uma canção que exprimia aqueles sentimentos. A gestação durou cerca de dois anos e, nesse processo, todos sofreram transformações. Tanto os compositores quanto a própria cria. “Porto-poema” custou a encontrar o seu novo batismo.
O verso que a intitulou foi um dos últimos a vir à vida. A melodia também se modificou plenamente, agora impulsionada por um esperançar dos novos tempos, de uma nova estrela a brilhar no horizonte. “Hoje a vida me dá bem mais...”, diz o verso de gratidão que encerra o poema em forma de canção.