Em junho de 2019, nos 50 anos do levante de Stonewall, enquanto a polícia de Nova York se desculpava pela violenta repressão contra homossexuais que gerou a revolta, a cantora Daniela Mercury aproveitava a celebração do icônico movimento de libertação gay para protagonizar com a jornalista e mulher Malu Verçosa, o primeiro beijo entre duas mulheres no Congresso Nacional.
“Nos beijamos porque somos um casal, não deveria ser nada demais. Quem se incomoda são os homofóbicos, as pessoas que estão nessa luta conosco admiram o amor, e pronto. O beijo é mais um manifesto de amor”, sustentou Daniela.
O movimento de Stonewall se tornou um símbolo tão forte da comunidade LGBTQIA+ que o dia em que ocorreu, um 28 de junho, passou a ser celebrado em todo mundo. Aproveitamos a data para relembrar canções brasileiras que celebram a diversidade sexual.
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos.
Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva...”, diz a mulher.
“Androginismo” (pop rock, 1978) – Kledir Ramil
Os porões da ditadura militar brasileira estavam infestados de torturas sinistras enquanto, em 1978, o grupo gaúcho Almôndegas lançava “Androginismo”, música de Kledir Ramil. Em dezembro daquele ano, o Ato Institucional N º5, que, dentre outras medidas, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, finalmente caiu, após uma década. Passados 40 anos, o país elegeu um presidente que defendia a tortura e apoiava manifestações em favor da volta do AI-5, e Almério tornou a cantar os versos de Ramil.
“Quem é esse rapaz que tanto androginiza/ Que tanto me convida pra carnavalizar?/ Que tanto se requebra no céu de um salto alto/ Que usa anéis e plumas a lantejoulizar?”. A faixa integra “Desempena Vivo”, registro do álbum de estúdio gravado em 2017, o segundo da carreira solo do pernambucano Almério – que valeu a ele o Prêmio da Música Brasileira na categoria cantor revelação –, e apresenta, ao todo, 19 canções que foram interpretadas no Teatro Santa Isabel, no Recife.
“Super-Homem, a Canção” (MPB, 1979) – Gilberto Gil
Em 1979, após a trilogia iniciada com “Refazenda”, e que seguiu com “Refavela” e “Refestança”, ao lado de Rita Lee, Gilberto Gil lançou o álbum “Realce”, um dos de maior destaque de toda a sua trajetória.
Novamente, o compositor aborda de maneira sensível o universo que se tangencia por mulheres e homens. Eliminando a linha imaginária que se consolidou por moral e costumes, Gil afirma sobre a canção: “todo homem é mulher e toda mulher é homem”.
A inspiração para a música veio após o parceiro Caetano Veloso chegar entusiasmado para lhe contar a história do filme do “Super-Homem” que acabara de assistir no cinema. O ponto que mais impressionou Gil foi o herói “mudando o curso da história por causa da mulher”, ao tentar reverter o tempo.
“Momentos” (balada, 1980) – Joanna e Sarah Benchimol
Rebatizada por um produtor, Joanna foi acolhida em todo o Brasil, que se habituou a entoar seu nome em espetáculos lotados. O clamor popular sempre esteve a seu lado. Há 40 anos, em 1983, Joanna faturou o seu quinto disco de ouro consecutivo com o lançamento de “Brilho e Paixão”, que vendeu mais de 150 mil cópias. O álbum vinha na sequência de outros sucessos de arrasar quarteirão, como “Estrela Guia” e “Chama”.
Mas a estreia profissional de Maria de Fátima, que ganhou o nome artístico de Joanna, foi em 1979, com o disco “Nascente”, que, além da faixa-título, trouxe os hits “Descaminhos”, “Cicatrizes” e “Agora”, misturando canções autorais a composições de Roberto Carlos, Milton Nascimento e Gonzaguinha.
Outro momento decisivo na carreira de Joanna foi a participação no especial “Mulher 80”, da Rede Globo, em que cantou “Seu Corpo” e “Cantoras do Rádio”, ao lado de Maria Bethânia, Elis Regina, Zezé Motta, Rita Lee, Fafá de Belém, Gal Costa e outras divas da música brasileira. Empoderada, Joanna assumia a homossexualidade e cantava o amor sem preconceitos nem medo de ser feliz. “Momentos”, parceria com Sarah Benchimol, lançada em 1980, dizia: “Vou te caçar na cama sem segredos/ E saciar a sede do desejo/ Deixar o teu cabelo em desalinho/ E me afogar de vez em teu carinho”.
“Masculino e Feminino” (MPB, 1983) – Pepeu Gomes e Baby do Brasil
Em 1983, o casal Pepeu Gomes e Baby Consuelo, que depois se tornaria Baby do Brasil, compôs um dos hinos da diversidade e contra o preconceito no Brasil. Já devidamente embalados pela aura mística que sempre os acompanhou, os compositores iniciam uma reflexão sobre o sexo do Criador para, em seguida, afirmar: “Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino”. A música foi lançada por Pepeu, em álbum com o mesmo nome, “Masculino e Feminino”, e depois regravada mais de uma vez por Baby. Recentemente, o casal voltou a interpretá-la em parceria no “Rock in Rio” de 2015. Um dos versos que se tornou mais conhecido foi justamente o da introdução, uma lição de vida contra o machismo: “Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino…”.
“Dá Um Close Nela” (balada, 1984) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Em 1984, a dupla formada por Roberto Carlos e Erasmo Carlos lançou a música “Close”, que popularmente ficou conhecida como “Dá um close nela”. Evidente homenagem para Roberta Close foi lançada e interpretada por Erasmo em clipe protagonizado pela modelo e atriz, sem dúvida a mais famosa transexual do Brasil. A beleza de Roberta foi sempre tão marcante que ela segue como a única transexual a estampar a capa da revista Playboy no país.
Cumpre ressaltar também o talento da artista como atriz, com atuação destacada no filme “O Escorpião Escarlate”, de Ivan Cardoso, num número de strip-tease. A música enaltece as qualidades físicas de Roberta Close, uma mulher na acepção da palavra, em todos os seus atributos. Ainda enfrentando preconceitos, Close é um exemplo de luta e dignidade para todos que desejam usufruir de sua sexualidade independente das barreiras impostas pela moral.
“Rubens” (rock, 1986) – Mário Manga
Provavelmente a música mais explícita do cancioneiro nacional no tocante à homossexualidade masculina, “Rubens”, rock de 1986 composto por Mário Manga, ganhou sua versão definitiva na “voz de trovão”, como bem dito por Rita Lee, da icônica Cássia Eller.
Como não poderia deixar de ser, havia aí mais uma ironia e tabu a ser placidamente derrubado por Cássia que, homossexual assumida, tornou-se uma das mais importantes figuras na luta pelo direito à união homoafetiva quando a Justiça decidiu dar a guarda de seu filho Chicão para Eugênia, companheira da cantora por décadas, em decisão, até aquele momento, inédita.
A postura de Cássia durante toda a vida foi um exemplo de liberdade e renascimento. Roqueira radical no início da carreira, ela atingiu a maturidade artística como mãe, descobrindo nuances em seu repertório, isso sem abandonar o vigor de suas interpretações. “Rubens”, lançada pelo grupo “Premeditando o Breque”, em 1986, não deixa dúvidas quanto ao ditado: “Rubens, eu acho que dá pé, esse negócio de homem com homem, mulher com mulher!”.
“Dia dos Namorados” (balada, 1987) – Cazuza e Perinho Albuquerque
Composta em 1986 a música “Dia dos Namorados” ficou fora de “Só Se For a Dois”, disco lançado por Cazuza um ano mais tarde. Parceria do “poeta exagerado” com Perinho Albuquerque, a música foi então oferecida para Zezé Motta, que a cantou em shows, mas não chegou a registrá-la por falta de gravadora na época. Trinta anos depois, com o intermédio do produtor e baixista Nilo Romero a gravação feita com a voz de Cazuza foi recuperada e mais: passou a contar com a adesão de Ney Matogrosso. Não por acaso, o dueto bisa relação protagonizada pelos dois, que foram namorados. É, no entanto, o único registro musical com a voz dos dois juntos.
“Não Recomendado” (pop, 2014) – Caio Prado
Na faixa “Não Recomendado”, a cantora Elza Soares dispara contra a perseguição à comunidade LGBT. Os recentes episódios de censura na Bienal do Livro do Rio, com o recolhimento de exemplares a pedido do prefeito Marcelo Crivella, e o cancelamento de produções cinematográficas por parte da Ancine, a mando do presidente Jair Bolsonaro, têm incomodado a artista. “É um absurdo tão grande que eu não sei nem o que falar. Homofobia é crime, já conquistamos essa vitória. Deixem a liberdade do povo em paz”, desabafa. A música foi composta por Caio Prado, e também lançada por ele, em um disco solo de 2014.
“Flutua” (pop, 2017) – Johnny Hooker
“Quando a Elza Soares faz um disco em que predominam as denúncias contra a violência de classe, sexual e de gênero, isso anuncia os tempos que estamos vivendo”, aponta o crítico musical Hugo Sukman. Na opinião da crítica musical Débora Nascimento, a profusão de uma música popular ativista se deve a uma “democratização dos meios de produção musical e divulgação”.
“Foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e interpretadas por pessoas que vivem experiências relativas às suas condições no mundo”, analisa ela, que cita “Flutua”, de Johnny Hooker. “Se alguém quiser entender a homossexualidade no Brasil do final desta década, essa composição será referência”, diz. A faixa ganhou um belo videoclipe com a participação de Liniker.
“Proibido o Carnaval” (axé, 2019) – Daniela Mercury
Em junho de 2019, nos 50 anos do levante de Stonewall, enquanto a polícia de Nova York se desculpava pela violenta repressão contra homossexuais que gerou a revolta, a cantora Daniela Mercury aproveitava a celebração do icônico movimento de libertação gay para protagonizar com a jornalista e mulher Malu Verçosa, o primeiro beijo entre duas mulheres no Congresso Nacional.
Esse misto de descontração e profundidade guiou a música “Proibido o Carnaval”. Ela causou alvoroço nas redes sociais em fevereiro, ao não poupar provocações para o conservadorismo de costumes. “Abra a porta desse armário/ Que não tem censura pra me segurar/ (…) Alegria cura, venha me beijar”, determina o refrão. Para completar, o videoclipe traz a participação especial de Caetano Veloso.
“O Amor É Um Ato Revolucionário” (balada, 2019) – Chico César
A experiência acumulada como presidente da Fundação Cultural de João Pessoa e, posteriormente, secretário de Cultura da Paraíba, entre 2009 e 2014, trouxe para Chico César saudades de outro ambiente menos concreto e pedregoso.
“Depois de seis anos trabalhando com burocracia, vai se aniquilando a sua espontaneidade e, aos poucos, você começa a acreditar naquele universo. Eu precisava, física e mentalmente, voltar a essa pegada de deixar o fluxo correr. Não como uma corrente de metal, mas um rio corrente. Isso contaminou minha vida em geral, foi para a minha música, e o público percebeu”, comenta o cantor.
Como prova dessa tese, ele lançou, em 2019, “O Amor É Um Ato Revolucionário”, em que transforma o afeto numa poderosa arma política. A canção tem tons religiosos que a carregam ao ambiente das preces e louvores. A música foi regravada pela cantora Sandy.
“O Mundo Vai” (axé, 2020) – Ivete Sangalo, Gigi, Ramon Cruz, Samir, Radamés Venâncio e Tierry
Ela é a estrela que há mais tempo reina na música brasileira. Recordista de vendas, sucesso de Norte a Sul do Brasil, Ivete Sangalo arrasta multidões em trios elétricos com a mesma gana e força que recebe elogios dos críticos mais elevados, ao cantar sentada em um banquinho com violão ao lado de Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Não é exagero constatar que Ivete pertence ao panteão das grandes cantoras da música brasileira, numa linhagem que vai de Elis Regina a Maria Bethânia, passando por Daniela Mercury, Nara Leão e Simone.
O diferencial de Ivete, pra além da voz afinadíssima, o timbre especial e a capacidade de pular durante horas em cima de um trio elétrico, é a sua relação com a plateia. Sempre disponível, ela consegue criar uma sintonia que elimina as possíveis distâncias.
Quem vai ao show de Ivete Sangalo se sente próximo da cantora, mesmo que esteja a mil quilômetros do palco. Ivete bota pra ferver! Em 2020, ela lançou o axé “O Mundo Vai”, que convoca geral pra festa.