A voz de Deus. Foi assim que Elis Regina definiu a voz de um dos maiores cantores da música brasileira. Para muitos, o maior de todos os tempos. Afinal de contas, não é qualquer um que recebe um elogio desse porte, ainda mais de Elis Regina.
Também conhecido como o mais mineiro de todos os cariocas, Milton Nascimento nasceu há 80 anos no Rio de Janeiro, mas foi criado em Três Pontas, no interior de Minas Gerais, onde foi adotado após a morte da mãe, vítima de tuberculose quando ele tinha apenas dois anos de idade.
Ainda criança, ganhou o apelido que carregaria por toda a vida: “Bituca”, em razão das manhas que fazia quando contrariado. A música entrou em sua vida por influência da mãe, que estudou com o maestro Heitor Villa-Lobos. Aos quatro anos de idade, Milton ganhou a sua primeira sanfona, e, aos 13, já cantava em conjuntos de baile da cidade.
A voz celestial não demorou a chamar a atenção. Vizinho de Wagner Tiso em Três Pontas, Milton se mudou para Belo Horizonte e conheceu a turma com quem formaria o histórico Clube da Esquina, movimento que abalou as estruturas da música brasileira com sua mistura única de canção barroca e influências estrangeiras, notadamente dos Beatles.
Em 1972, há 50 anos, gravou, com as presenças de Toninho Horta, Lô Borges, Beto Guedes, Nelson Angelo, Wagner Tiso, e letras de Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos, o álbum que transformou em clássicas músicas como “Cais”, “O Trem Azul”, “Nada Será Como Antes” e “Paisagem da Janela”.
Antes, em 1967, Milton tirou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção com “Travessia”, música de sua autoria com Fernando Brant. Tímido, o compositor foi inscrito no festival à revelia, por iniciativa do cantor e amigo Agostinho dos Santos. O primeiro disco lançado veio no mesmo ano.
Além de intérprete fora de série, Milton passou a chamar a atenção também como compositor, tendo suas canções gravadas por Nana Caymmi, Caetano Veloso, Simone, Wilson Simonal, e, principalmente, Elis Regina, que registrou gravações antológicas para “Maria, Maria”, “Fé Cega, Faca Amolada”, “Caxangá”, “Nos Bailes da Vida”, dentre muitas outras.
Afetado por problemas cardíacos e a diabetes que o perseguiram nos últimos anos, Milton anunciou uma turnê de despedida dos palcos, intitulada “A Última Sessão de Música”, que chega a Belo Horizonte no próximo dia 13 de novembro, no estádio do Mineirão. Fato é que a voz de Deus continuará ecoando em nossos corações.
“Travessia” (canção, 1967) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Existe forte dose de melancolia em “Travessia”, letra de Fernando Brant para melodia de Milton Nascimento, definida como “toada que vem de Minas”. Foi, aliás, a primeira vez que Fernando Brant escreveu uma letra de música, a pedido do amigo, que a interpretaria em 1967, inscrito à revelia pelo cantor Agostinho dos Santos no Festival Internacional da Canção, quando tirou o segundo lugar.
Essa melancolia pode ser constatada no verso de conotação suicida “vou fechar o meu pranto/vou querer me matar”. Na interpretação de Elis Regina, lançada em 1974, cada palavra da canção é ruminada, conferindo a elas a densidade pretendida por seus autores.
Embora seja uma canção de amor, mais especificamente de fim-de-caso, “Travessia”, cujo título foi retirado do romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, abre os braços para uma perspectiva existencialista, conjugando amor, esperança e sofrimento. A canção ainda foi regravada por Leny Andrade e Sarah Vaughan.
“Durango Kid” (canção, 1970) – Toninho Horta e Fernando Brant
Não é difícil perceber a influência de Durango Kid na música brasileira, basta observar a presença do personagem em canções de Raul Seixas, Sérgio Sampaio e na parceria entre Toninho Horta e Fernando Brant, justamente intitulada com seu nome.
Herói dos quadrinhos e faroestes norte-americanos, o caubói que agia como Robin Hood, defendendo os oprimidos dos poderosos, apareceu pela primeira vez em 1940, e se tornou um enorme sucesso no Brasil a partir de 1960, com a reprodução de uma série que resultou em 64 filmes originais até 1952.
Em “Durango Kid”, Fernando Brant e Toninho Horta invocam a personagem para bradar, de forma indireta, contra a ditadura instaurada no Brasil a partir de 1964, que perduraria por vinte anos. As armas do herói contra a censura dos poderosos e de um Estado criminoso e assassino são a denúncia e a esperança, representadas pelo jornal, que se transforma em revólver e sorriso. A música foi gravada por Milton Nascimento, Célia, e outros.
“Paixão e Fé” (canção, 1977) – Tavinho Moura e Fernando Brant
Lançada em 1977, pela cantora Simone, “Paixão e Fé”, música de Tavinho Moura e Fernando Brant, ganhou sua versão definitiva na voz de Milton Nascimento, um ano depois, no disco “Clube da Esquina 2”. Com sua interpretação, Milton soube captar a força das metáforas presentes na letra de característica descritiva, feito raro e demonstrativo da força do intérprete.
Expressa através dos símbolos, ou seja, da igreja, do sino e da catedral, a religiosidade é uma experiência transcendental, que Milton evoca com sua voz etérea, capaz de levar o ouvinte a planos celestiais. O povo se mistura a areias e flores e às pedras do chão, enquanto nas varandas há moças e lençóis. Profano e sagrado se encontram, como a matéria e o espírito.
O arranjo da canção, que começa com sons de tonalidade barroca, contribui para essa sensação. A música foi regravada por Vânia Bastos, Flávio Venturini, pelo próprio Tavinho Moura, e pelo grupo Boca Livre, tocando plateias em todo país.
“Coração Civil” (canção, 1981) – Milton Nascimento e Fernando Brant
O Brasil vivia a expectativa pela volta da democracia em 1981, quando Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram “Coração Civil”, que logo se configurou como um dos hinos das Diretas Já, um movimento que reuniu todas as forças democráticas do país, de Lula da Silva a Leonel Brizola, passando por Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.
Lançada por Milton no icônico disco “Caçador de Mim”, recebeu inúmeras regravações, de Ney Matogrosso a Tadeu Franco, Jessé, Nonato Luiz e Zé Renato, reforçando a ânsia que havia na sociedade brasileira pela abertura do horizonte, fechado desde a instauração do golpe militar de 1964.
A palavra resistência talvez seja a que melhor define essa letra, que fala sobre justiça, liberdade e principalmente, utopia, valores consagrados pela Constituição Cidadã de 1988, e ainda se refere a desejos condensados pela essencialidade religiosa, o vinho e o pão que representam o amor ao próximo...