Se tem uma coisa que passa de geração pra geração, é a vontade de uma vida melhor. Se seu avô já passou necessidade, teve algum tipo de privação, certamente a luta dele foi para que seu pai não passasse pela mesma coisa. Isso tudo pra construir um caminho melhor pra você. Quando a privação é de alimento então, a vontade de uma vida melhor para geração futura é ainda maior. Mas nem sempre é possível romper esse ciclo.
Quando lá na década de 1950, Carolina Maria de Jesus disse que “o maior espetáculo do pobre da atualidade é comer” esperava-se que a tal atualidade fosse breve e que, sobretudo, não se repetisse. Mas hoje, em 2022, comer ainda é, infelizmente, espetáculo pra muita gente. Quem passou necessidade no passado, não sonhou com esse futuro para as gerações que viriam.
Aos 61 anos, dona Dinalva Alves dos Santos Vieira, vê a fome bater de novo à porta. E, desta vez, a porta é da casa onde estão ela, o marido, a irmã, o filho, a nora e 7 netos. Uma situação desoladora.
“A gente fica triste. Eu fico pensando na vida. Deus sabe que é muito triste. Eu tento ajudar, mas eu não tenho condições para ajudar, né? Aí meu neto chega aqui e fala: ‘eu tô com fome, eu quero pão’. Eu fico com dó de ver os meninos com fome. Às vezes, eu saio e não tenho nem R$1 para comprar pão para ele”, disse, emocionada.
Toda a família vive em um barracão na Vila Frigodiniz, em Contagem, com a renda do marido de dona Dinalva, além de um benefício do Auxílio Brasil. São 12 pessoas vivendo com uma renda que não dá nem pra 4. Com todos os adultos desempregados, o jeito é viver de ajudas e doações.
“Falta para mim, mas como eu não posso deixar os meninos com fome, eu vou com eles para pegarem um pacote de arroz, um pacote de açúcar, um litro de óleo, água, arroz e feijão… Não tem negócio chique não. A gente não tem condições”, relatou.
Apesar das privações, o jeito é correr atrás de uma saída. Alguma porta que leve a mais dignidade, mais garantias, mais alimento. Mas o caminho não tem sido fácil. “Eu falo com meu filho: ‘vai arrumar um bico’. Ele anda, anda, anda… Ele já está ficando ‘doido’. Aí eu fico preocupada. Eu fico sem dormir preocupada com os menino que estão com fome, preocupada com as coisas que vão faltar. E eu que luto”, lamentou.
E ela segue viva em busca de um futuro melhor para os netos. Como Carolina Maria de Jesus, que escreveu: “De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer”, dona Dinalva busca ajuda onde pode. “Eu chego e falo: ‘você não tem nada para me dar para levar para meus netos não?’ Aí quando tem as coisas, as meninas me dão uma cesta básica ou qualquer coisa né”, contou.
Mesmo com essa ajuda, a fome está ali, sempre à espreita. E, com uma frequência insuportável para qualquer avó, ela se manifesta nos pedidos dos netos. “O pequenininho fala: ‘ô, vó, estou querendo um biscoito. E eu respondo: ‘como é que eu compro?’ Eu fico com dó, mas não tenho condições”, disse.
Essa mesma falta de condições atinge milhares de outras famílias para além do barraco humilde onde vive dona Dinalva e os 11 parentes. E todos sofrem de um problema muito maior do que a falta de comida. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura no Brasil, desde o final de 2018, o problema do país não é de escassez de alimentos como outras partes do mundo, mas sim de desigualdade.
Desigualdade que gera fome e destrói sonhos. Desde os de Carolina Maria de Jesus, lá em 1950, quando ela disse: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando”, até os de dona Dinalva, em 2022. “Fico pensando o que que eu posso fazer… Se eu pudesse ajudar, eu ajudava. Eu não tenho. Hoje tem, mas amanhã não tem”, finalizou.
Hoje tem, amanhã não tem. Quais os prejuízos disso para adultos e crianças? E vai ser assim até quando? É o que a reportagem busca responder a partir de amanhã (14).