Um restaurante paraense no Edifício Central, no Centro de Belo Horizonte, em frente à Praça da Estação, vem atraindo filas de quem quer experimentar — ou matar a saudade — da culinária do Pará, com pratos como vatapá, tacacá e maniçoba. Mas, junto ao sucesso, o estabelecimento também tem enfrentado ataques de ódio relacionados à cultura nortista.
Na semana passada, o restaurante Flor de Jambu divulgou, nas redes sociais, prints com comentários xenofóbicos que vão desde declarações de “nojo” de pratos tradicionais e críticas à culinária amazônica, como “a comida deles é muito estranha”, até mensagens e ódio mandando nortistas “voltarem para sua terra” (veja a publicação abaixo). Esse tipo de preconceito é crime no Brasil e é enquadrado como racismo. E não se trata de um caso isolado: mesmo subnotificados, os registros cresceram mais de 140% nos últimos anos em Minas Gerais, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
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Como tudo começou
A proprietária do restaurante Flor de Jambu é Fernanda Souza, de 30 anos, filha de cozinheira e neta e bisneta de tacacazeiras — mulheres amazônicas que preparam e vendem o tacacá, iguaria tradicional da Região Norte.
Moradora de Belo Horizonte há quase dez anos, ela diz que encontrou na cozinha um modo de expressão e resistência. “A Flor de Jambu surgiu em meados de 2017, quando me mudei para BH em 2016 e senti um impacto muito grande da diferença social e cultural. Pensei que, se eu estava sentindo isso, outras mulheres nortistas também estariam, além dos preconceitos que a gente ouvia contra o Norte no geral”, contou.
Sem recursos para abrir o espaço cultural, Fernanda iniciou o projeto vendendo cachaça de jambu e comidas típicas congeladas, adaptando-se durante a pandemia da Covid-19. No fim de 2021, encontrou no Edifício Central a oportunidade de montar um restaurante — equipado com seus próprios itens domésticos.
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Ela conta que os ataques aumentaram em um período de forte polarização política, pelo espaço se identificar como LGBTQIA+ e periférico, e costumam voltar a ocorrer sempre que algum conteúdo do restaurante viraliza.
“Acredito que o preconceito contra pessoas do Norte e Nordeste envolve muitas camadas. Somos vistos como regiões historicamente mais precarizadas e que sempre forneceram mão de obra para o Sudeste, o que faz com que nos tratem como ‘segundo escalão’, como se não tivéssemos boa formação ou fôssemos preguiçosos. Também existe um forte preconceito ligado às nossas raízes e à cultura originária, especialmente aos povos indígenas.”
Fernanda diz que a visão de superioridade e certos pensamentos preconceituosos aparecem em perguntas frequentes sobre o Norte, como: “Lá tem Wi-Fi?”; “Lá tem universidade?”; “Lá tem prédio?”; “Tem McDonald’s?”; “Tem jacaré ou cobra na rua?”.
O que é xenofobia
Alexandre Melo Franco Bahia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Comissão de Diversidade da OAB/MG, explica que a xenofobia é crime no Brasil e é tratada como o crime de racismo.
A tipificação está na Constituição de 1988 e foi regulamentada pela Lei 7.716/89, posteriormente alterada para punir discriminações por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
De acordo com o especialista, a xenofobia pode ser praticada contra estrangeiros, mas também contra pessoas de outras regiões do Brasil, o que é denominado xenofobia interna ou regionalismo discriminatório.
“Falando do caso do restaurante paraense, eu vejo mensagens claramente xenofóbicas. A xenofobia interna ainda é muito pouco discutida no Brasil — a gente fala mais sobre racismo contra pessoas negras, sendo um tema gravíssimo, mas mais presente no debate público. A COP 30, que acabou de acontecer em Belém (PA), talvez tenha jogado mais luz sobre a xenofobia contra pessoas do Norte e, pela visibilidade, até potencializado essas manifestações”, explicou o especialista.
A lei diferencia a xenofobia dependendo de como ela acontece: é considerada racismo quando a discriminação é contra um grupo de forma geral, e é injúria racial quando a ofensa é dirigida a uma pessoa específica por sua origem, cor ou etnia. “Desde 2023, a injúria racial também faz parte da Lei do Racismo” explicou.
A legislação ainda prevê aumento de pena quando o crime é cometido por meio de comunicação, como redes sociais e internet, ou em contextos esportivos, religiosos, artísticos ou culturais.
“Infelizmente, vimos isso recentemente em um jogo entre um time do Pará e outro de Santa Catarina, quando uma mulher foi acusada de racismo xenofóbico contra torcedores paraenses”, lembrou. Em 15 de novembro, a torcedora disse aos adversários: “Gastou o salário para vir… agora vai embora a pé. Olha tua cor. Olha, pobre aqui não fica”.
“Na aplicação dessa lei, o juiz deve considerar discriminatória qualquer atitude ou tratamento dirigido a uma pessoa ou a um grupo minoritário que cause constrangimento, humilhação, vergonha, desconfiança, medo ou exposição indevida”, acrescentou o especialista.
As origens e a pena
Alexandre explicou que o regionalismo discriminatório no país tem raízes históricas, alimentadas por um imaginário que retrata Norte e Nordeste como regiões atrasadas e por estereótipos que descrevem seus habitantes como pessoas que não trabalham ou ''vivem às custas do Estado’’ — ideias sem qualquer base real, mas disseminadas erroneamente.
“O atraso econômico de algumas dessas regiões, inclusive, levou no passado, principalmente no século passado, a um grande fluxo migratório para o Sudeste, mas também para o Sul e para o Centro-Oeste. E isso alimenta a xenofobia, sobretudo em épocas de crise econômica. Em períodos de crescimento, ninguém se importa muito com pessoas que estão em subempregos, mesmo sendo de outro lugar. Mas, em momentos de crise, quando os empregos diminuem, a xenofobia sempre aumenta. Esse é um fenômeno histórico, que tende a se repetir”, explicou.
E, nesse processo, são os nordestinos e nortistas que sofrem. “Da mesma forma que não existe racismo contra pessoas brancas, também não há como caracterizar xenofobia de uma pessoa do Norte contra alguém do Sudeste ou do Sul, porque não existe uma discriminação estruturada que coloque pessoas do Sul ou Sudeste como inferiores do ponto de vista xenofóbico”.
No país, o crime é punido com reclusão de 2 a 5 anos, além de multa, sendo inafiançável e imprescritível.
Registros de xenofobia em Minas
Os números de Minas Gerais, levantados pela reportagem junto à Sejusp, mostram um aumento consistente nos registros relacionados a xenofobia: o total de ocorrências gerais passou de 17 em 2020 para 41 em 2024, e o período de janeiro a outubro de 2024 registrou 35 casos — praticamente igual aos 34 já contabilizados no mesmo período de 2025.
Vale ressaltar que o levantamento não informa a origem das vítimas dos crimes, não sendo possível afirmar quantos deles foram contra nortistas e nordestinos.
Os dados demonstram que, do total de 178, 29,21% foi registrado como injuria, 17% como ameaça, e 12,36% como difamação. Em Belo Horizonte, entre 2020 e 2025, foram 39 registros no total, com picos em 2024 (13 ocorrências) e 2021 (8).
Registros de Xenofobia em Minas Gerais
Os números ainda são pequenos e a avaliação é de que estejam subnotificados. “A gente sabe que há uma subnotificação muito grande. A maior parte dos casos não chega a se transformar em uma denúncia formal na polícia, mas mesmo os registros que aparecem mostram um crescimento”, disse.
“No caso de Minas, isso fica evidente quando analisamos. Em BH, especialmente em 2024, houve um salto de 4 para 15 ocorrências — um aumento de mais de 300%”, acrescentou. Para ele, esse avanço tem relação tanto com o aumento da intolerância quanto, por outro lado, com a maior consciência das vítimas em denunciar.
Como denunciar
O especialista orienta que a vítima de xenofobia, se possível, documente tudo: “Grave áudio, vídeo ou fazer prints, especialmente quando o ataque ocorre nas redes sociais. Depois, é fundamental registrar um Boletim de Ocorrência (B.O.) em qualquer delegacia da Polícia Civil”, explicou.
Ela lembra que, em cidades como a capital mineira, há delegacias especializadas e que crimes online também podem ser denunciados nas unidades de crimes cibernéticos.
“A vítima também pode ligar para o Disque 100, que funciona 24 horas. E é importante buscar orientação de um advogado ou defensor público para garantir a preservação das provas e um encaminhamento eficaz do caso.”
Os caminhos para o combate e a valorização da cultura
A eliminação do problema é complexa devido às várias camadas envolvidas, mas Fernanda defende que expor os casos é essencial para romper com a violência. “Se abafarmos um caso, nada vai mudar”, afirmou, destacando também a importância de reconhecer as diversas culturas presentes na cidade — “não só a local, mas também a nortista, cubana, argentina, congolesa, peruana, colombiana e tantas outras”.
Ela acrescenta que os migrantes não devem ser lembrados apenas em momentos como o de denuncia: “Estamos aqui para parcerias, eventos, para mostrar nosso trabalho. Essas atitudes fazem a diversidade cultural chegar a mais pessoas”. “Dar visibilidade para nós, chefs que somos de outros lugares, e participar de projetos são práticas que fazem essa diversidade cultural chegar a mais pessoas — e elas perceberem: ‘poxa, não era nada do que eu pensava, que legal, que importante,” acrescentou.