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Boate Kiss: gás que matou 242 pessoas era o mesmo usado em campo nazista

Cianeto foi usado como método de execução durante a Segunda Guerra Mundial

Imagem da fachada da boate Kiss registrada em setembro de 2022

Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram e outras 636 ficaram feridas no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, há exatos dez anos. Naquela madrugada, a espuma do teto pegou fogo após contato com faíscas de um sinalizador dando início ao processo de combustão e a intoxicação pelo ácido cianídrico (HCN) - um dos compostos do cianeto. Esta substância, inclusive, foi usada nas câmaras de gás por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial para matar judeus e outros prisioneiros.

Em seu segundo episódio, a série “ Todo Dia a Mesma Noite” (Netflix), que aborda a tragédia, destaca que jovens envenenados jamais sobreviveriam ao contato com a toxina - ela continua agindo no corpo exposto e pode matar em questão de minutos.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Química-Regional Minas Gerais, o “cianeto é formado por um átomo de carbono e um de nitrogênio (CN-), que consegue reagir rapidamente e é extremamente tóxico”.

Teddy Marques, químico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que a substância já foi usada para fins diferentes. “É uma substância utilizada principalmente como veneno e, sua forma mais tóxica, é na forma do ácido cianídrico - também conhecido como ácido prússico. Ele já foi usado, por exemplo, como substância tóxica na agricultura - como pesticida - e como arma química”.

Na boate Kiss, o ácido cianídrico foi formado a partir da queima de poliuretano (PU) - usado como revestimento acústico - o que é proibido. “A queima do forro produziu gás cianídrico (HCN) e monóxido de carbono (CO), que são gases letais”, destacou a Sociedade de Química.

“Esse poliuretano é uma substância obtida a partir de um álcool e de uma substância chamada isocianato. Essa substância ao entrar em combustão libera diversas substâncias tóxicas, sendo uma delas, o cianeto - na forma do ácido cianídrico - e também monóxido de carbono”, acrescentou o químico da UFMG.

“Esse tipo de espuma utilizada não é adequada para esse tipo de revestimento interno, porque é uma espuma que entra em combustão muito fácil. Então na presença de uma fagulha, ela facilmente entra em combustão liberando essas substâncias tóxicas”, completou o professor.

A Sociedade de Química explicou como a substância reage no corpo humano. “O monóxido de carbono (CO) se liga à hemoglobina, dificultando a circulação e distribuição de oxigênio, causando asfixia. Enquanto o cianeto (CN-), bloqueia toda a cadeia respiratória e redução dos níveis de oxigênio nas células e tecidos também levando à morte”.

O efeito depende da quantidade a que a pessoa foi exposta. “Se o ar estiver contaminado com uma quantidade de até 0,006% de cianeto, uma pessoa adulta consegue ficar nesse ambiente sem ter efeitos mais graves por aproximadamente 1 hora. Enquanto quantidades acima de 0,02% são fatais em questão de minutos. No caso da Boate Kiss, o ambiente era totalmente fechado e a porcentagem do cianeto atingiu níveis altos em pouco tempo”.

“Para evitar incidentes com gases letais oriundos de um incêndio, é fundamental tomar medidas preventivas, como manter o local arejado com fácil acesso a saídas de emergência, extintores de incêndio e uso de materiais adequados na construção do espaço”, finalizou a Sociedade de Química.

Coleção de irregularidades

Era madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 quando a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da Boate Kiss, usou um sinalizador que soltava faíscas durante sua apresentação. Aquelas faíscas atingiram a espuma acústica que cobria o teto da boate, que rapidamente pegou fogo e uma fumaça tóxica tomou conta do local.

Inaugurada em 2009, a Kiss colecionava irregularidades. A boate tinha apenas uma porta de saída; não tinha saídas de emergência; as janelas do banheiro estavam lacradas; e o estabelecimento não tinha licença para funcionar. Além disso, naquele dia, seguranças impediram que jovens deixassem o local sem entregar as comandas de consumo.

Tragédia mudou legislação

Após a tragédia, a legislação não é a mesma. O capitão Vinicius Fulgêncio, chefe do setor de vistorias do Centro de Atividades Técnicas do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, relata que muitas mudanças ocorreram desde então.

“Hoje os valores de multa aplicados para boates e casas de show são os máximos previstos na legislação. A primeira multa chega a R$ 12 mil aproximadamente e a segunda multa chega a quase R$ 25 mil. Além disso, a gente teve aperfeiçoamento de aspectos técnicos referentes, principalmente, aos materiais de acabamento e revestimento dessas edificações”, explicou.

Segundo Vinicius, os materiais não podem ser de fácil propagação de incêndio, como, por exemplo, o teto ser de isopor. “Além disso, existe uma outra medida de segurança que foi inserida após a tragédia da boate Kiss, que é uma medida de controle de fumaça. Então é necessário ter um sistema específico de exaustão para edificações que recebam mais de 500 pessoas e tenham mais de 930 metros quadrados”.

Na boate Kiss, os clientes entravam e saíam pela mesma porta e não havia sequer uma saída de emergência no local. “Além da necessidade de ter duas saídas de emergência, que devem estar em pontos distintos, estas devem estar totalmente desobstruídas para que se possa chegar em via pública ou em um ambiente seguro.” À época, um grupo usou marretas para quebrar paredes com o intuito de liberar fumaça e desobstruir a saída de quem ainda estava no local.

Em 2014, a utilização de materiais pirotécnicos, que podem causar incêndios, foi proibida em ambientes fechados - podendo apenas ser usados fogos indoor (fogos frios). “Os fogos de forma geral, sinalizadores, que nós estamos habituados, são terminantemente proibidos dentro de boates”.

Três anos depois foi criada a lei nº 13.425, conhecida como lei Kiss, que estabelece diretrizes para segurança de edificações, incluindo boates e casas de show. “É uma lei que abrange todas as edificações, não só boates e casas de show, e é uma espinha dorsal de uma legislação nacional de segurança contra incêndio”.

Ninguém está preso

Apesar de condenados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 2021, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann (sócios da Kiss) e Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira) e Luciano Bonilha Leão (auxiliar da banda) seguem em liberdade. Eles aguardam um novo julgamento, já que o de dezembro foi cancelado por “questões técnicas”.

Com informações do repórter Eustáquio Ramos

Patrícia Marques é jornalista e especialista em publicidade e marketing. Já atuou com cobertura de reality shows no ‘NaTelinha’ e na agência de notícias da Associação Mineira de Rádio e Televisão (Amirt). Atualmente, cobre a editoria de entretenimento na Itatiaia.