Ouvindo...

Cientista brasileiro criou ‘abelhas assassinas’ por acidente e revolucionou a apicultura; saiba como

Por causa do episódio, o paulista Warwick Estevam Kerr foi hostilizado durante anos, só tendo reconhecimento trinta anos depois

Quando foram adotadas técnicas de manejo específicas para esse animal, a apicultura brasileira deu grandes saltos.”

No Dia da Abelha, vale a pena relembrar a história do cientista, engenheiro agrônomo, geneticista e entomologista (estudioso dos insetos), professor de cinco universidades brasileiras e quatro dos Estados Unidos, Warwick Estevam Kerr, que dedicou sua vida às pesquisas relacionadas ao desenvolvimento da apicultura brasileira, mas teve sua trajetória marcada por um incidente. O fato ocorreu em 1957, quando ele fazia experiências com 51 abelhas rainhas - sendo 50 da África do Sul e uma da Tanzânia - da espécie Apis mellifera scutellata, altamente produtiva, mas muito agressiva, no campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro (SP).

Os insetos haviam sido colocados em quarentena em colmeias num bosque de eucaliptos no campus da Universidade. O objetivo era que apenas as mais mansas fossem escolhidas. Para evitar que as rainhas escapassem e se espalhassem, as colmeias foram fechadas por uma malha muito fina, que permitia a passagem apenas das operárias, que são menores. Só que um funcionário da equipe, imaginando que as ‘pobrezinhas’ estavam presas por engano, retirou as malhas das colmeias, libertando as rainhas que ganharam o “mundo”.

Expedição à África

Kerr havia acabado de voltar da África, onde havia ido estudar a produção de mel para depois, aplicar seus novos conhecimentos na apicultura brasileira. Ele queria aumentar a produtividade e a resistência das abelhas europeias, que tinham sido introduzidas no Brasil, em 1839, mas que não haviam se adaptado muito bem ao país, com exceção para o sul e sudeste do país.

Na bagagem de volta ao Brasil, o cientista trouxe as abelhas africanas. Só que, com o fato de ficou conhecido como “O Incidente de Rio Claro”, 26 rainhas escaparam, cruzaram com as europeias e deram origem a enxames de abelhas africanizadas que se espalharam, primeiro por São Paulo, e depois por todo o Brasil e hoje estão pelas três Américas.

Africanas tocaram o ‘terror’

Sem predadores naturais no novo lar e muito agressivas, aonde chegavam, “tocavam o terror”. “De 1957 até 1964 essas abelhas cruzaram-se com as alemãs, italianas e portuguesas”, contou Kerr, em entrevista à revista Estudos Avançados, da USP, em 2005. “O problema é que como apicultores instalavam seus apiários próximos a galinheiros, pocilgas e cocheiras, houve mortes de galinhas, porcos, cavalos, e a mortalidade de gente em decorrência de ataque de abelhas, que era de 120 por ano, passou para 180.”


Kerr acreditou que sua carreira estivesse encerrada

“Eu não esperava que daria a volta por cima. Pensava que teria uma vida desgraçada para o resto dos meus dias. As mulheres franziam a testa, mostravam-me para os filhos e diziam: ‘aquele é o homem que introduziu a abelha brava no Brasil”, disse ele, na mesma entrevista.

Com o tempo, veio a justiça

O tempo, no entanto, lhe fez justiça. Nascido em Santana de Parnaíba, em 9 de setembro de 1922, Kerr se formou em Engenharia Agronômica, em 1945, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, na qual também fez doutorado e livre docência, e foi professor, de 1951 a 1955, e chefe do Departamento de Genética.

A médica veterinária Débora Cristina Sampaio de Assis, do Departamento de Tecnologia e Inspeção de Produtos de Origem Animal da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), contou, em entrevista à BBC Brasil, que as abelhas se espalharam rapidamente pelo país e, por meio do cruzamento com as europeias, originaram às abelhas africanizadas. “Assim, por medo, muitos apicultores abandonaram a atividade, pois não possuíam equipamentos adequados nem conhecimento técnico para fazer o manejo das abelhas africanizadas”, diz Débora.

Nem tudo foi morte e pânico

“A curto prazo houve um impacto negativo, com a desistência da atividade por parte da maioria dos apicultores e a morte de muitas pessoas e animais”, contou à BBC Brasil, o engenheiro agrônomo Breno Magalhães Freitas, do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará (UFC),

“Mas a médio e longo prazo, tão logo se entendeu que essa abelha era diferente e não podia ser criada como a europeia, quando se estudou seu comportamento e se desenvolveram as indumentárias de proteção, fumigadores maiores, e se passou a criá-la afastada das pessoas e animais e, principalmente, adotadas técnicas de manejo específicas para esse animal, a apicultura brasileira deu grandes saltos.”

Por causa disso, segundo ele, hoje o Brasil é um grande produtor e exportador de mel de abelhas e própolis, coisa impensável naquela época.

“E isso ocorre apesar dos nossos apicultores não serem qualificados como deveriam, ainda com dificuldades de acesso a informação, equipamentos, crédito e comercialização justa para seus produtos”, acrescenta Freitas.

O próprio Kerr disse, na entrevista a Estudos Avançados, como se deu esse processo. “A nossa produção se normalizou porque os apicultores aprenderam a lidar com a abelha africanizada”.

Há controvérsias sobre se o acidente poderia ou não ter sido evitado, mas é consenso de que não houve negligência. A ideia original não era de que as abelhas se soltassem nas matas, tanto que foram tomados cuidados de prevenção colocando-se as telas protetoras nas colmeias.

"É preciso lembrar que aqueles eram outros tempos, e a maioria dos funcionários de fazendas eram pessoas simples, sem maiores instruções.” Débora, por sua vez, lembra que a realização de experimentos de campo não é tarefa simples. Há dificuldades para controlar todos os fatores que podem interferir nos resultados. “Por isso, não se pode afirmar que houve negligência ou falta de rigor no experimento”, disse à BBC.

“O fato é que as abelhas africanizadas se adaptaram muito mais facilmente ao ambiente que as abelhas europeias e o que era para ter sido feito de forma controlada, acabou sendo feito pela própria natureza.”

O próprio Kerr, que morreu aos 96 anos, em 15 de setembro de 2018, diz, na sua entrevista, que de 1979 em diante, tudo mudou.

“Passaram a tirar fotografias minhas e falavam: ‘esse é o homem que salvou nossa apicultura’”, contou.

“Por causa dele o papai comprou caminhão novo’. Enfim, durante 14 anos vivi uma tragédia. Agora, minha mulher acha a história até engraçada e eu, como bom caipira de Santana de Parnaíba, digo ‘louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Kerr nasceu em Santana de Parnaíba (SP), em 9 de setembro de 1922. Formou-se em Engenharia Agronômica, em 1945, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, na qual também fez doutorado e livre docência. Foi professor de 1951 a 1955, e chefe do Departamento de Genética.

Maria Teresa Leal é jornalista, pós-graduada em Gestão Estratégica da Comunicação pela PUC Minas. Trabalhou nos jornais ‘Hoje em Dia’ e ‘O Tempo’ e foi analista de comunicação na Federação da Agricultura e Pecuária de MG.