Uma das premiações mais aguardadas do ano, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, promovido pela Academia Brasileira de Cinema, anunciou, na noite desta quarta (23), os vencedores de sua mais recente edição. A cerimônia foi realizada na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
O grande laureado da noite foi o mineiro “Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins, da produtora Filmes de Plástico, de Contagem, que tem despertado a atenção do cinema nacional nos últimos anos. O longa-metragem, que conta com uma inusitada participação especial do ex-jogador Sorín no elenco, foi o principal ganhador da edição.
“Marte Um” faturou a estatueta de melhor longa-metragem de ficção e ainda levou o primeiro lugar em mais sete categorias: direção, fotografia, roteiro original, montagem, som, melhor ator (para Carlos Francisco) e melhor ator coadjuvante (para Cícero Lucas).
Outros filmes que saíram da premiação consagrados foram “A Viagem de Pedro”, que conta a história de Dom Pedro I, dirigido por Laís Bodanzky, e o infantil “Pluft, o Fantasminha”, baseado na obra da escritora belo-horizontina Maria Clara Machado.
Dira Paes foi eleita a melhor atriz graças à atuação em “Pureza”, enquanto Adriana Esteves ficou com a de melhor atriz coadjuvante por “Medida Provisória”. No plano internacional, “Argentina, 1985" saiu como melhor filme ibero-americano.
‘Marte Um’, de representante brasileiro ao Oscar à consagração nacional
Indicado, no ano passado, para representar o Brasil no Oscar, o longa-metragem “Marte Um” começa com um dos traumas nacionais: a ascensão ao poder de um discurso de ódio baseado na demagogia e no ataque às instituições, preconizando um ambiente de violências de toda ordem.
Mas essa violência, claro, tem seus alvos preferenciais, aqueles que devem ser varridos, fuzilados e metralhados. A família de Deivinho, vivido por Cícero Lucas, passa, em tese, ao largo dessa circunstância. Mas só em tese.
Afinal de contas, eles representam o extrato social que historicamente foi abandonado à própria sorte numa sociedade de classes que se estrutura a partir duma brutal desigualdade. Um dos principais méritos do filme dirigido e roteirizado por Gabriel Martins, da Filmes de Plástico, produtora de Contagem (MG) que já possui trajetória de singular qualidade no cinema nacional, é extrapolar essa condição a que a população preta e periférica muitas vezes é relegada nas abordagens cinematográficas.
Aqui não se trata de ignorar a realidade, mas de toma-la em seu caráter amplo. As personagens, para além de complexas, são diversas. Temos o professor de geografia, a médica, a aluna de Direito, o jardineiro, o casal abastado e esclarecido, assim como o casal igualmente rico, mas deslumbrado e consumista, enfim, todos os vieses que compõem a nossa sociedade, e todos pretos e brasileiros.
É o retrato de um país imerso em suas contradições, como a busca pela segurança que desemboca nas milícias, ou a procura do sucesso que, inevitavelmente, leva ao fracasso. A questão original é que o roteiro aborda esse clima de tensão política transversalmente, contornado, por exemplo, a dimensão partidária dos personagens centrais dessa disputa, como se eles pairassem sobre esse cenário feito urubus que voam acima da carniça.
Esse jogo de mimese tem um de seus pontos mais altos na cena a que a personagem Tércia, vivida brilhantemente por Rejane Faria, é vítima de uma pegadinha daqueles popularescos programas de TV aberta.
O trauma a que ela é submetida é visto como mera brincadeira, relativizando a violência do ato. Ao trauma particular acopla-se o trauma de todo um país que parece ter perdido a capacidade de discernir entre a barbárie e a civilidade.
Wellington, o pai da família, interpretado com igual brio por Carlos Francisco – e todos os atores, diga-se de passagem, muito bem dirigidos – trabalha como jardineiro e zelador em um prédio de luxo na capital mineira que tem, entre seus habitantes, o ex-jogador Sorín, numa participação que colhe bem os frutos de ter em seu elenco uma estrela, ao mesmo tempo, local e mundial.
Fanático pelo Cruzeiro, Wellington solicita ao ídolo argentino uma ajuda para o filho, astro do time de várzea do bairro. Deivinho até gosta de bater bola, mas seu sonho é participar de uma excursão a Marte, apelidada com o título da película. Assim como Deivinho, Wellington é uma personagem complexa, que luta há quatro anos contra o alcoolismo e reproduz muitos dos preconceitos arraigados à sociedade brasileira.
Mas é impossível sentir antipatia ou indiferença por ele, dada a forma de composição do roteiro e da personagem, que favorecem a percepção de uma figura essencialmente humana, ali sujeita a acertos e erros. Para os mineiros, ainda há o charme do sotaque que nos caracteriza tão bem. O filme acerta o tom ao investir no humor com naturalidade, de forma simples, sem forçar a barra, permitindo que o drama de fato emocione e evite a pieguice barata.
Tudo está no lugar, como quando a filha Eunice, papel de Camilla Damião, transa com a namorada ao som de Emílio Santiago – cantor negro e homossexual. Ela é de uma geração insubmissa que dança funk nas baladas, enquanto estuda Direito na faculdade pública com a professora também preta.
A mãe, por outro lado, se dedica às tarefas domésticas em casa e na de pessoas que a contratam, e tem no samba dos finais de semana a na gafieira em bailes o alívio para uma vida de privações e sacrifícios.
Também nesses conflitos constroem-se os contornos que dão consistência e substância ao filme. Não menos interessante é a participação de Russo Apr, o Flávio, novo companheiro de Wellington na jardinam e outros afazeres do prédio, que tenta inquietar a submissão do parceiro com um discurso inflamado sobre a exploração a que ambos e a grande massa da sociedade brasileira é relegada.
A fala poderia ser taxada, nos dias de hoje, de comunista, por aventar uma revolução que ponha fim ao atual estado de coisas que se arrasta. Se fala sobre família, “Marte Um” é muito mais sobre esses nossos traumas nacionais.
Um trunfo da película que não pode ser negado é tratar desses temas a partir de uma perspectiva que possibilita a identificação com a parcela mais populosa do país, sem descambar para o didatismo, e revelando semelhanças entre os diferentes. E, ao fim, entrega uma chance de conciliação e esperança para nós.