Não é exagero dizer que Maria Bethânia é música em cada fibra, até porque suas interpretações lancinantes nunca pecaram pelo comedimento, numa tênue linha em que é preciso dominar o instrumento para que a entrega não se torne gratuita. E o instrumento da cantora está além da voz, pois é capaz de transformar um simples gesto numa proporção de palavras prenhes de significado. Não por acaso, Maria Bethânia prefere ser chamada de intérprete.
Aí está, dentre tantos, o legado, é bem possível, de maior relevância desta artista ímpar na música popular brasileira, apelidada de “abelha-rainha” após interpretar canção escrita pelo poeta baiano Wally Salomão e musicada pelo irmão Caetano Veloso, “Mel”. Foi Caetano, aliás, quem “batizou” Maria Bethânia, após insistir com a matriarca do clã para que desse à filha o nome da música gravada com enorme sucesso por Nelson Gonçalves e composta pelo pernambucano Capiba.
“Preconceito” (samba-canção, 1953) – Antônio Maria e Fernando Lobo
Nem sempre o compositor tem autoridade para definir os rumos que sua canção irá tomar. Pois este é um ótimo indício. Como disse Mario Quintana: “A poesia não se entrega a quem a define”. Escrito por Antônio Maria em parceria com Fernando Lobo, o samba-canção “Preconceito”, de 1953, foi lançado pela musa da dor-de-cotovelo Nora Ney, que pelo atrevimento da letra denominou a partir de então outro fã clube para si. Tomada nos braços dos homossexuais como hino, foi também regravada por Maria Bethânia e Cazuza. Antônio Maria, mesmo sem querer, colocou outra pedra filosofal no centro da música brasileira.
“Carcará” (canção, 1964) – João do Vale e José Cândido
Um ano após o início da ditadura militar no Brasil, os movimentos artísticos já se organizavam para protestar contra tal violência. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, com direção de Augusto Boal, o espetáculo “Opinião” foi um marco da resistência do período. Um dos participantes, João do Vale, era um maranhense de Pedreiras, cuja árida experiência no sertão o credenciava a encarnar o nordestino com todas as suas revoltas e medos.
O tom autobiográfico do relato de João, presente na música como um todo, se acentua quando índices de desigualdade social no nordeste são lidos de forma enérgica por Maria Bethânia, que, com gesto e entonação agressiva, dá vida ao “Carcará”, pássaro-título conhecido por sua força e implacabilidade. Fora isso, Ney Matogrosso declarou mais tarde que a interpretação masculina de Bethânia à ocasião foi o primeiro ato cênico de homossexualidade na história da música brasileira.
“A História do Circo” (samba, 1972) – Batatinha
Gravado pela primeira vez em 1954 por Jamelão, o compositor e cantor Oscar da Penha, conhecido como Batatinha, era também um melodista afiado, capaz de, com uma simples caixinha de fósforos, construir a forma perfeita para suas palavras se encaixarem. Lançada por Maria Bethânia em 1972, “A História do Circo” dá uma prova: “Todo mundo vai ao circo/ menos eu, menos eu/ como pagar ingresso/ se eu não tenho nada/ fico de fora escutando a gargalhada”. A segunda e última parte é ainda mais cortante. “A minha vida é um circo/ sou acrobata na raça/ só não posso é ser palhaço/ porque eu vivo sem graça”. Foi regravada por Celso Sim.
“Sonho Meu” (samba, 1978) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
A maneira singular, perfeccionista e suingada de tocar o violão levou a comparações com Baden Powell, de quem Rosinha de Valença seria o modelo feminino, mas é redutor considerar que ela fosse apenas um “Baden de saias”. Rosinha tinha acento único: ao executar, produzir e compor. Além de apurado tino musical. Foi graças a ela que Maria Bethânia conheceu “Sonho Meu”, em um sarau organizado para apresentar as canções de Dona Ivone Lara. Assim, Bethânia e Gal Costa gravaram esse bonito samba em dueto, no ano de 1978.
“Mel” (MPB, 1979) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Depois de gravar “Mel”, em 1979, Maria Bethânia passou a ser conhecida como a “Abelha-Rainha da MPB”, dado o sucesso da canção, que traz, logo no primeiro verso, essa denominação. A história da música que deu nome ao LP de Bethânia é curiosa. Encomendada a Wally pela cantora, que já havia gravado, de sua lavra, “Anjo Exterminado” e “A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa”, ela enfrentou percalços. Wally já pesquisava o tema, mas empacou no meio e Caetano, responsável pela melodia, aconselhou Bethânia a desistir. Pelo contrário, ela afirmou que queria Wally “mil vezes mais tenso”. Foi esse o raio que impulsionou Wally a finalizar a letra de “Mel”, que cita espécies de abelha. “Ó abelha rainha faz de mim/ Um instrumento de teu prazer/ E de tua glória...”.
“Talismã” (MPB, 1980) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Novamente, uma música de Wally Salomão com Caetano Veloso deu título ao disco de Maria Bethânia. “Talismã” foi lançado em 1980, e se tornou o terceiro disco consecutivo da cantora baiana a superar a marca de um milhão de cópias vendidas, algo, até então, inédito na música popular brasileira. A música combina sensualidade com ímpeto de vida, sob a malha poética própria de Wally Salomão, criado sob a égide da poesia marginal, mas com uma formação pra lá de erudita e multidisciplinar. Tropicalista por natureza, como Caetano, ele consegue estabelecer conexões entre som e palavra, sem descambar para o simplório. “No coração do meu corpo um porta-joias existe/ Dentro dele um talismã sem par/ Que anula o mesquinho, o feio e o triste”, enuncia a bela letra.
“É O Amor” (sertaneja, 1991) – Zezé di Camargo
Em 1991, ao gravar o primeiro LP de sua carreira, os irmãos goianos Zezé di Camargo & Luciano lançaram a balada sertaneja “É O Amor”, que rapidamente alcançou o primeiro lugar nas paradas de sucesso, levando a dupla do ostracismo para o estrelato em questão de dias. A música composta por Zezé di Camargo não demorou a chamar a atenção do mercado fonográfico, sendo regravada no ano seguinte pelo grupo de pagode Raça Negra. Mas a surpresa maior aconteceu quando Maria Bethânia a registrou com delicadeza, em 1999, no álbum “A Força Que Nunca Seca”. A intérprete baiana voltaria a fazer movimento parecido em 2019, quando deu voz a “Evidências”, sucesso da dupla Chitãozinho & Xororó.
“Folia de Reis” (folia de reis, 2014) – Roque Ferreira
Tradicionalmente, é em 6 de janeiro que se desmontam os principais artigos da decoração natalina, como a árvore e o presépio. A data simboliza o dia em que os Três Reis Magos teriam visitado o menino Cristo e oferecido a ele ouro, incenso e mirra. No Brasil, essas ofertas ganharam os tons de fitas coloridas, tambores e muita musicalidade, e se tornou a Folia de Reis, cantada por vários compositores. Em “Meus Quintais”, seu mais recente disco de inéditas, Maria Bethânia resolveu reacender as tradições de um Brasil interiorano e rural, e recebeu de presente do compositor Roque Ferreira a música “Folia de Reis”. Dedicada a Rodrigo, o irmão mais velho de Bethânia, e responsável por recuperar a celebração na terra natal da família, a cantiga saúda: “Em nome dos santos reis/ E do santo filho de Maria…”.