Há 60 anos, a “Garota de Ipanema” reina absoluta na música brasileira. Desde que foi lançada, em 1963, ela já recebeu mais de 440 regravações, de músicos como Dick Farney, Nara Leão, Astrud Gilberto, Elis Regina, Marina Lima, Toquinho, Maria Creuza e mais uma infinidade, passando, claro, por seus autores, Vinicius de Moraes e Tom Jobim. As dez músicas brasileiras mais regravadas até hoje são pródigas em histórias inusitadas, surpreendentes até para quem já cansou de ouvi-las no rádio. Por exemplo: uma de nossas mais clássicas canções falava de cigarro, e não de “cantinho”. Assim como o estandarte maior do Brasil gerou um bate-boca entre Ary Barroso e Villa-Lobos.
“Garota de Ipanema” (samba-bossa, 1963) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes – 442 gravações!
“Garota de Ipanema” é, ainda hoje, a música brasileira mais executada em todos os tempos dentro e fora do país. Uma típica peça de bossa nova, composta por dois dos maiores nomes da cena, o poeta Vinicius de Moraes e o maestro Tom Jobim, em 1963, a música segue o “doce balanço” da garota em versos e melodias, num ritmo parecido ao do mar, distante e sereno em sua força, seu poder de síntese e ebulição. Assim, as imagens do corpo feminino ganham na natureza, e através dela, seu ideal de perfeição. “Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema, o seu balançado é mais que um poema, é a coisa mais linda que eu já vi passar”. E foi regravada, entre outros, por Dick Farney...
“Aquarela do Brasil” (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso – 430 gravações!
Dois dos maiores defensores da música brasileira romperam laços por conta de “Aquarela do Brasil.” Samba-exaltação composto por Ary Barroso em 1939, ela não venceu o concurso promovido pelo maestro Heitor Villa-Lobos no ano seguinte. A música, urdida ao piano em uma noite chuvosa no Rio de Janeiro, logo recebeu as críticas do cunhado de Ary, que questionou qual coqueiro não dava coco, e revelou-se em seguida um carro-chefe da caravana cheia de balangandãs e reis congos que percorreu os Estados Unidos. Por ocorrência da “política de boa vizinhança” promovida por seu país, o cineasta Walt Disney veio parar em terras brasileiras e descobriu por aqui o balanço do samba. Encantou-se com a miscelânea de Ary Barroso e a escolheu para trilha sonora do filme que tinha Zé Carioca no papel principal, a sua animação “Alô, Amigos”.
“Carinhoso” (samba-choro, 1937) – Pixinguinha e João de Barro – 430 gravações!
Pixinguinha foi regente de várias orquestras, entre elas a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, Oito Batutas e Diabos do Céu. Suas inovações melódicas provocaram celeuma na imprensa, que não compreendia a insurgente sofisticação. Ao escrever um choro em duas partes, e não em três, como era costume, o próprio compositor sabia que seria alvo de reclamações. Por isso mesmo, “Carinhoso” demorou 20 anos para tomar forma definitiva e alcançar sucesso irrevogável. O que só aconteceu quando João de Barro, o Braguinha, adentrou a ourivesaria de Pixinguinha e lapidou com versos a refinada harmonia de “Carinhoso”, registrada em 1928. Desde a gravação original de Orlando Silva, em 1937, por recusa de Francisco Alves e quebra de compromisso de Carlos Galhardo, a música se tornou um dos maiores emblemas do cancioneiro romântico brasileiro, com mais de 400 regravações...
“Asa Branca” (toada, 1947) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira – 382 gravações!
“Asa Branca” é considerada a música brasileira mais conhecida do país, um clássico absoluto. Originária de um tema folclórico que versa sobre uma pomba brava que foge do sertão ao pressentir os sinais da seca, essa toada foi desenvolvida por Luiz Gonzaga, que a conhecia desde a infância através da sanfona do pai. O “Rei do Baião” pediu ao parceiro Humberto Teixeira para criar uma letra, e incluiu melhoras na melodia, para satisfazer uma comadre que gostaria muito de vê-la gravada. O primeiro registro data de 1947. Depois, ela recebeu inúmeras regravações, sendo reconhecida no Brasil e no exterior. Nos anos 1960, o polêmico produtor Carlos Imperial até espalhou um boato de que ela teria sido gravada pelos Beatles. Mas quem a regravou foi Zé Ramalho.
“Manhã de Carnaval” (samba, 1959) – Luiz Bonfá e Antônio Maria – 337 gravações!
Convidado por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Agostinho dos Santos gravou – com João Gilberto ao violão –, “Manhã de Carnaval”, de Antônio Maria e Luiz Bonfá, para a trilha de “Orfeu Negro”, dirigido pelo francês Marcel Camus, que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960. O êxito da participação em “Orfeu Negro”, que também venceu Cannes e o Globo de Ouro, catapultou o cantor Agostinho dos Santos ainda mais ao alto. Na trilha, outro estouro na voz de Agostinho foi “A Felicidade”, clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, dupla da qual já havia gravado “Eu Sei Que Vou Te Amar”, em 1959. Tudo convergiu para que, em 1962, ele fosse chamado para a histórica apresentação no Carnegie Hall, em Nova York, que apresentava a bossa nova para o mundo.
“Eu Sei Que Vou Te Amar” (samba-canção, 1959) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes – 279 gravações!
Considerada ainda hoje, com justiça, uma das mais românticas canções do repertório nacional, “Eu Sei Que Vou Te Amar” costuma embalar pombinhos apaixonados de todas as gerações. Composta por Vinicius de Moraes e Tom Jobim, a música foi lançada pela cantora lírica Lenita Bruno, em 1959. No mesmo ano, recebeu outras regravações, sendo a mais destacada delas a da intérprete paulista Elza Laranjeira. Os versos de Vinicius ganharam a adesão de uma declamação feita por ele próprio do “Soneto de Fidelidade”, mais conhecido pelo afamado verso “que seja infinito enquanto dure”, numa gravação feita por Maria Creuza em 1972, com o acompanhamento do violão de Toquinho. “Eu sei que vou te amar/ Por toda a minha vida, eu vou te amar”...
“Corcovado” (samba-bossa, 1960) – Tom Jobim – 261 gravações!
Perseguida pelos militares após declarações na imprensa, Nara Leão se exilou com o marido, o cineasta Cacá Diegues, em Paris, onde finalmente cantou a bossa nova em disco, em 1971. Originalmente, o álbum havia sido concebido com os violões de Nara e da cantora e compositora Tuca, que à época morava em Paris, mas ele foi rearranjado por Roberto Menescal ao chegar ao Brasil. Os grandes estandartes da bossa nova, como “Insensatez”, “Samba de Uma Nota Só”, “Retrato em Branco e Preto”, “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade” aparecem no disco que traz Nara em uma divertida capa, olhando para o céu durante uma tempestade de neve. Também comparece “Corcovado”, samba-bossa de Tom Jobim, lançado pelo cantor João Gilberto, que sugeriu uma alteração no primeiro verso, que dizia: “um cigarro, um violão”. A partir da sugestão do músico, “um cantinho, um violão” se eternizou...
“Chega de Saudade” (bossa nova, 1958) – Vinicius de Moraes e Tom Jobim – 257 gravações!
Os sentimentos universais de abandono e desilusão encontrariam uma intérprete de voz calorosa, capaz de conciliar os arroubos de suas antecessoras Angela Maria e Dalva de Oliveira às interpretações mais delineadas que ditariam a canção nacional a partir do aparecimento de João Gilberto e sua bossa nova. Por sinal, meio de gaita, Elizeth Cardoso acabaria tida como espécie de precursora “torta” do estilo, ao cantar Tom Jobim e Vinicius de Moraes no álbum “Canção do Amor Demais” (1958), com direito à emblemática “Chega de Saudade” abrindo os trabalhos. Para completar, havia o violão de João Gilberto em duas faixas. Mas Elizeth era uma cantora à moda antiga, como entregava o título do LP que entrou para a nossa história musical.
“Desafinado” (samba bossa, 1959) – Tom Jobim e Newton Mendonça – 245 gravações!
“Desafinado” não passaria incólume pelo texto ácido do crítico musical José Ramos Tinhorão, o mais temido do Brasil. Ele usava uma troça de Moreira da Silva, grande cantor do samba de breque, para afirmar que a grande invenção de João Gilberto tinha sido alterar o ritmo do samba, que era muito marcado, para algo totalmente inconstante, o “ritmo de goteira”. “Desafinado” é o grande exemplar de João Gilberto nesse sentido. Música de Tom Jobim e Newton Mendonça, ela foi gravada pelo Papa da Bossa Nova como um samba bossa, em 1959. Tinhorão ia além, ao sustentar que “Desafinado” plagiava “Violão Amigo”, samba de Bide e Marçal, já lançado por Gilberto Alves lá no ano 1942.
“As Rosas Não Falam” (samba, 1976) – Cartola – 235 gravações!
Numa tarde de 1975, o compositor Nuno Veloso, que levava Cartola e dona Zica até a casa de Baden Powell, resolveu comprar flores para o casal. Ao se encantar com o desabrochar da roseira no dia seguinte, Zica questionou o marido: “Como é possível, Cartola, tantas rosas assim?”, ao que ele respondeu sem muito entusiasmo: “Não sei, as rosas não falam”. E começava a florescer naquele dia mais uma música que traria voz eterna a seu compositor. Gravada por ele e por Beth Carvalho em 1976, “As Rosas Não Falam” demonstrava toda a esperança lírica de Cartola, que a escrevera em seus 67 anos. Tinhorão garantia que a melodia da música havia sido roubada da instrumental “La Rosita”, de Coleman Hawkins e Ben Wester. Mais uma polêmica do jornalista...