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Clara Nunes superou barreiras e exaltou religiões de matriz africana

Cantora mineira, nascida em Caetanópolis, eternizou sucessos como ‘Portela na Avenida’, ‘Conto de Areia’ e ‘Morena de Angola’

Clara Nunes posa para a capa do disco ‘Brasil Mestiço’, de 1980, enquanto dança jongo no morro da Serrinha

O manto azul e branco da Portela ilumina os passos da mineira guerreira, filha de Oxum com Iansã. Clara Nunes foi cantada em verso e prosa por João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, com quem viveu um matrimônio cheio de amor e música. Mas, principalmente, cantou o Brasil e suas raízes africanas, com samba no pé e, eventualmente, dores no coração.

Mineira de Caetanópolis, no interior do Estado, Clara Nunes encantou todo o Brasil com o brilho de sua voz e a exuberância de sua personalidade, que ela adornava com amuletos e patuás. Sempre vestida de branco, Clara foi a expressão de um Brasil profundo, orgulhoso de suas origens.

Nascida em uma família de pessoas humildes, ela começou a vida trabalhando numa fábrica de tecidos, até se mudar para Belo Horizonte, onde cantou, pela primeira vez, na rádio Inconfidência. A estreia em disco não demorou a acontecer. Em 1966, lançou “A Voz Adorável de Clara Nunes”, dando voz a valsas e boleros.

Foi apenas em 1968, com a produção de Adelzon Alves, que Clara selou seu encontro definitivo junto ao samba, graças ao enorme sucesso de “Você Passa Eu Acho Graça”, música do conterrâneo mineiro Ataulfo Alves, em parceria com o capixaba, convertido em carioca, Carlos Imperial.

E foi no Rio de Janeiro que Clara Nunes se tornou um fenômeno nacional. Lá, se encontrou com os bambas da Portela, passou a frequentar a quadra da agremiação, interpretou músicas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e Paulinho da Viola, e trouxe as religiões da matriz africana para o centro da música popular brasileira, se consagrando como a primeira cantora a ultrapassar a barreira de cem mil cópias vendidas, derrubando um tabu que dizia que mulher não vendia disco na música brasileira.

Entre os sucessos eternizados pela intérprete, estão músicas como “Conto de Areia”, “Alvorada no Morro”, “Tristeza Pé no Chão”, “Juízo Final”, “Meu Sapato Já Furou”, “Mente”, pérola rara de Paulo Vanzolini e Eduardo Gudin, “Peixe com Coco”, “Portela na Avenida”, “Morena de Angola”, que Chico Buarque compôs em sua homenagem, e tantas outras, colocando Clara Nunes no altar definitivo da música popular brasileira, cercada por seus santos e orixás.

Nascida há 80 anos, nossa mineira guerreira morreu precocemente, em 1983, quando tinha apenas 40 anos de idade, após se submeter a uma cirurgia de varizes. O Brasil chorou a perda de sua estrela mais carismática, a sereia do mar de Minas. Mas, hoje, após décadas de seu surgimento, o tempo provou que o canto de Clara Nunes segue inteiro e intacto como um quebranto invencível.